«(…) De tais coisas e de muitas
outras semelhantes ou piores originaram-se diferentes medos e imaginações nos
que continuavam vivos, e quase todos tendiam a um extremo de crueldade, que era
esquivar-se e fugir aos doentes e às suas coisas; e, assim agindo, todos
acreditavam obter saúde. Alguns, considerando que viver com temperança e
abster-se de qualquer superfluidade ajudaria muito a resistir à doença,
reuniam-se e passavam a viver separados dos outros, recolhendo-se e
encerrando-se em casas onde não houvesse nenhum enfermo e fosse possível viver
melhor, usando com frugalidade alimentos delicadíssimos e óptimos vinhos, fugindo
a toda e qualquer luxúria, sem dar ouvidos a ninguém e sem querer ouvir notícia
alguma de fora, sobre mortes ou doentes, entretendo-se com música e com os
prazeres que pudessem ter. Outros, dados a opinião contrária, afirmavam que o
remédio infalível para tanto mal era beber bastante, gozar, sair cantando,
divertir-se, satisfazer todos os desejos possíveis, rir e zombar do que estava
acontecendo; e punham em prática tudo o que diziam sempre que podiam, passando
dia e noite ora nesta taverna, ora naquela, bebendo sem regra nem medida, fazendo
tais coisas muito mais nas casas alheias, apenas por sentirem gosto ou prazer
em fazê-las.
E
podiam assim agir estouvadamente porque os outros, como se já não precisassem
viver, tinham abandonado as suas coisas e a si mesmos; de modo que as casas, na
sua maioria, tinham-se tornado comuns e eram usadas pelos estranhos que
porventura chegassem, tal como teriam sido usadas por seus próprios donos; e,
apesar desse comportamento animalesco, fugiam dos doentes sempre que podiam. E,
em meio a tanta aflição e miséria da nossa cidade, a veneranda autoridade das
leis divinas e humanas estava quase totalmente decaída e extinta porque os seus
ministros e executores, assim como os outros homens, estavam mortos ou doentes,
ou então se encontravam tão carentes de servidores que não conseguiam cumprir
função alguma; por esse motivo, era lícito a cada um fazer aquilo que bem
entendesse. Muitos outros observavam uma via intermediária entre as duas
descritas acima, não se restringindo na alimentação, como os primeiros, nem se
entregando à bebida e a outras dissipações como os segundos, mas usavam as
coisas na quantidade suficiente para atender às necessidades, não se encerravam
em casa, iam a toda parte, alguns com flores nas mãos, outros com ervas aromáticas,
outros ainda com diferentes tipos de especiaria, que levavam com frequência ao
nariz, pois consideravam óptimo aliviar o cérebro com tais odores, visto que o
ar todo parecia estar impregnado do fedor dos cadáveres, da doença e dos remédios.
Outros tinham sentimento mais cruel (se bem que talvez fosse a atitude mais
segura) e diziam que contra a peste não havia remédio melhor nem tão bom como
fugir; e, convencidos disso, não se preocupando com nada a não ser consigo, vários
homens e mulheres abandonaram a sua cidade, as suas casas, as suas
propriedades, os seus parentes e as suas coisas, buscando os campos da sua região
ou das alheias, como se com aquela peste a ira de Deus não tencionasse punir as
iniquidades dos homens onde quer que eles estivessem, mas só afligisse aqueles que
ficassem dentro dos muros da sua cidade, ou como se achassem que ninguém
deveria ficar nela, chegada que era a sua hora derradeira.
E, dentre esses que tinham tão
variadas opiniões, embora não morressem todos, também nem todos se salvavam: ao
contrário, adoeciam muitos que pensavam de modos diversos, em todos os lugares;
e esses doentes, que, quando estavam sãos, tinham dado exemplo àqueles que agora
continuavam sãos, definhavam quase abandonados por todas as partes. E, sem contar
que um cidadão evitava o outro, que quase nenhum vizinho cuidava do outro e que
os parentes raramente ou nunca se visitavam, e só o faziam à distância, era
tamanho o pavor que essa tribulação pusera no coração de homens e mulheres, que
um irmão abandonava o outro, o tio ao sobrinho, a irmã ao irmão e muitas vezes
a mulher ao marido; mas (o que é pior e quase incrível) os pais e as mães
evitavam visitar e servir os filhos, como se seus não fossem. Por todas essas
coisas, para a multidão incalculável de homens e mulheres que adoeciam não restava
outro socorro senão a caridade dos amigos (e destes houve poucos) ou a ganância
dos serviçais, que trabalhavam em troca de gordos salários e acordos abusivos,
se bem que com tudo aquilo não restassem muitos: e os que havia eram homens ou
mulheres de tosco engenho, a maioria não acostumada a tais serviços, que só
serviam para pôr nas mãos dos doentes algumas coisas que estes pedissem ou para
velar a sua morte; e, cumprindo tal serviço, muitas vezes pereciam junto com os
seus ganhos. E, do facto de estarem os doentes abandonados por vizinhos,
parentes e amigos e de serem poucos os serviçais, decorreu um costume quase desconhecido
antes: nenhuma mulher que adoecesse, por mais graciosa, bela ou fidalga que fosse,
se importava de ter um homem ao seu serviço, fosse ele jovem ou não, e de lhe
expor todas as partes do corpo sem nenhum pudor, tal qual teria exposto a uma
mulher, desde que a doença impusesse essa necessidade; e, nos tempos que se
sucederam, isso talvez tenha sido razão de menor honestidade daquelas que se
curaram. Além disso, morreram muitos que, se porventura ajudados, teriam
escapado; assim, tanto por falta do devido atendimento, que os doentes não
podiam ter, quanto pela força da peste, era tamanha a multidão de gente a
morrer noite e dia na cidade que causava espanto ouvir dizer, quanto mais
presenciar. Desse modo, como que por necessidade, entre os que sobreviveram,
surgiram usos contrários aos primitivos costumes dos cidadãos». In
Giovanni Boccaccio (1313-1375), Decameron, 1354, Relógio d’Água, ISBN
978-972-708-879-9, L&Pm, 2013, ISBN 978-852-542-941-4.
Cortesia de Ed’Água/L&Pm/JDACT