terça-feira, 16 de outubro de 2018

O Livro dos Prazeres Proibidos. Federico Andahazi. «Quando o cónego que presidia o tribunal deu a ordem, os réus, um a um, foram obrigados a se sentar na cadeira curial, cujo assento de madeira tinha um buraco no centro»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) O corpo da mulher estremeceu tentando expulsar o trapo com uma náusea involuntária. A ceia frugal subiu do estômago à garganta e, ao topar com o pano, voltou como um refluxo incontrolável e inundou os seus pulmões. A pele rosada de Zelda transformara-se numa superfície roxa por causa da falta de ar. A mulher conservava a expressão de horror: os olhos lutavam para sair das órbitas e a boca aberta numa máscara de pânico e desespero formavam um quadro macabro. O estranho, coberto da cabeça aos pés por uma túnica negra, observava a pele da sua vítima com olhos extasiados, enquanto ela resfolegava, alucinando até à convulsão. Zelda ainda conservava um vestígio de vida, embora já não conseguisse mover-se. Então, o agressor se apressou antes que alguém pudesse bater à porta. Com o corpo ainda morno e palpitante, ela sentiu que o encapuzado afundava o escalpelo na base do pescoço e fazia uma incisão vertical que ia até ao púbis. O objectivo não era matá-la de imediato, mas, antes, esfolá-la. Zelda, in pectore, implorava a Deus que a levasse o quanto antes. O agressor exibia uma destreza assombrosa. Segurava o escalpelo como quem segura uma pluma. Trabalhava com uma habilidade própria dos ofícios mais delicados. Não agia como um carniceiro. Feita a primeira incisão, começou a separar a pele da carne com cortes subtis, desprendendo-a sem danificá-la. Foi um trabalho rápido e preciso; retirou o couro inteiro, numa única peça, como se fosse um casaco. Zelda morreu no exacto momento em que o agressor concluiu a sua macabra tarefa, sem poupá-la de nenhum sofrimento. Aquela figura semelhante à névoa estendeu a peça de couro humano e abraçou-a como quem reencontra a pessoa amada. A cena era patética: o assassino, coberto dos pés à cabeça de tal maneira que não deixava ver nem uma nesga de seu corpo, se agarrava ao trapo de pele com a forma de uma mulher desabitada como se quisesse enfiar-se naquele couro. Permaneceu assim por muito tempo, até que, finalmente, enrolou a pele, guardou-a em uma bolsa, abriu a porta do quarto, assegurou-se de que não havia ninguém por perto, desceu as escadas correndo e, como um fantasma, desapareceu tão misteriosamente como aparecera.

A madrugada dissipara a neblina da noite anterior. O sol do amanhecer penetrava pelos vitrais da catedral, em cujo interior começava a primeira audiência do julgamento dos três maiores falsários de que o Sacro Império Romano Germânico se recordava. Os homens haviam sido presos quando tentavam vender livros falsos que fabricavam, com grande talento para tais procedimentos obscuros, nas lúgubres ruínas da abadia de Santo Arbogasto, nos arredores de Estrasburgo. Quando o cónego que presidia o tribunal deu a ordem, os réus, um a um, foram obrigados a se sentar na cadeira curial, cujo assento de madeira tinha um buraco no centro. O primeiro, um homem alto, magro e de barba vasta chamado Johann Fust, levantou a falda de sua túnica de fina seda e se sentou de tal modo que seus genitais desnudos ficaram pendendo dentro do orifício. Outro religioso se pôs aos seus pés, fechou os olhos, esticou o braço e levou a mão à parte inferior do assento. Com todos os seus sentidos concentrados no tacto, sopesou as partes do acusado. Depois de comprovar a consistência touruna dos testículos que repousavam na concavidade de sua mão direita, o religioso virou a cabeça para os juízes e disse em voz alta: Duos habet et bene pendentes (tem dois e pendem bem). No entanto, a inspecção não terminou ali. O prelado, designado para esse único fim, mudou ligeiramente a mão de lugar e percorreu com os dedos as vergonhas do réu como se ainda tivesse alguma dúvida. Cerrou as pálpebras, franziu o cenho e, então, com expressão de quem é experiente, concluiu: Haud preaputium, iudaeus est (não tem prepúcio, é judeu).
Desde que Joana de Ingelheim, também nascida em Mainz, se fizera passar por varão e chegara a ocupar o papado com o nome de Bento III, fazia-se em toda a Rheinland-Pfalz a inspecção curial antes do início de cada formalidade. Era imprescindível que o tribunal tivesse certeza do género dos acusados para que o erro não se repetisse. Escondendo a humilhação, o primeiro acusado levantou-se e, ajeitando a roupa, cedeu o lugar ao segundo, um homem enxuto, pálido e de aspecto enfermo, de nome Petrus Schöffer. Com a mesma técnica, o clérigo se ajoelhou, tacteou em baixo da tábua e, desta vez sem hesitar, resumiu em uma única frase: Duos habet et iudaeus est. Não era boa para Fust e Schöffer a revelação das suas origens judaicas perante o tribunal da Santa Igreja. Por último, sentou-se o terceiro, um homem de aparência singular: as pontas de seu espesso bigode confluíam numa barba arruivada, que ia dos lábios ao peito como torrentes de uma cascata. Tinha o semblante altivo, a testa ampla e o olhar orgulhoso. Os olhos puxados e um gorro de pele lhe conferiam um aspecto de alguém vindo da Mongólia. Diferentemente dos anteriores, vestia um avental de trabalho, e tanto as suas vestes quanto às suas mãos estavam manchadas de preto e vermelho. O sacerdote voltou a se prostrar ao lado da cadeira curial e, depois de tocar o homem, sentenciou sem vacilar: Duos habet et bene pendentes. O sobrenome do réu era Gensfleish zur Laden, embora fosse mais conhecido pelo nome da casa em que fora criado: Gutenberg, Johannes Gutenberg, o falsário mais audacioso de todos os tempos». In Federico Andahazi, O Livro dos Prazeres Proibidos, Editora Bertrand Brasil, 2013, ISBN 978-852-861-692-7.

Cortesia de EBertrandB/JDACT