Sobre a nudez forte da verdade. O manto
diáfano da fantasia
«(…) Eu ia enfiar as botas; e,
autorizado agora por ela a recrear-me fora de casa até às nove e meia, corria
ao fim da Rua da Madalena, ao pé do Largo dos Caídas. Aí, com resguardo,
encolhido na gola do meu sobretudo, cosido com o muro, como se o candeeiro de
gás que ali havia, fosse olho inexorável da Titi, penetrava sofregamente na
escadinha da Adélia... Sim, da Adélia! Porque nunca mais me esquecera, desde a
noite em que o Rinchão me levou ao Salitre, o beijo que ela me dera, lânguida e
branca, sobre o sofá. Em Coimbra procurara mesmo fazer-lhe versos; e esse amor
dentro do meu peito foi, no último ano de Universidade, no ano de direito
eclesiástico, como um maravilhoso lírio que ninguém via e que perfumava a minha
vida... Apenas a Titi me estabeleceu a mesada das três moedas, corri em triunfo
ao Salitre; lá havia as roseirinhas à janela, mas a Adélia já lá não estava. E
foi ainda o prestante Rinchão que me mostrou esse primeiro andar, junto ao
Largo dos Caídas, onde ela agora vivia patrocinada por Eleutério Serra, da
firma Serra Brito & Cia, com loja de fazendas e modas na Conceição Velha.
Mandei-lhe uma carta ardente e seria, pondo reverentemente no alto: Minha
senhora. Ela respondeu, com dignidade: o cavalheiro pode vir aqui ao meio-dia.
Levei-lhe uma caixinha de pastilhas de chocolate, atada com uma fita de seda
azul; pisando comovido a esteira nova da sala eu antevia, pela engomada brancura
das bambinelas, a frescura das suas saias; e o rígido alinho dos móveis
revelava-me a rectidão dos seus sentimentos. Ela entrou, um pouco constipada,
com um xaile vermelho pelos ombros. Reconheceu logo o amigo do Rinchão; falou
da Ernestina, com severidade, chamando-lhe porcalhona. E a sua voz
enrouquecida, o seu defluxo, davam-me o desejo de a curar nos meus braços, de
um longo dia de agasalho e sonolência, sob o peso dos cobertores, na penumbra
mole da sua alcova. Depois ela quis saber se eu era empregado ou estava no
comércio... Eu contei-lhe com orgulho a riqueza da Titi, os seus prédios, as
suas pratas. Disse-lhe, com as suas mãos grossas presas nas minhas: se a Titi
agora rebentasse, eu é que lhe punha a menina uma casa chic!
Ela murmurou, banhando-me todo na
negra doçura do seu olhar: ora! O cavalheiro, se apanhasse o bago, não se
importava mais comigo! Ajoelhei sobre a esteira, trémulo, esmagando o peito
contra os seus joelhos, ofertando-me como uma rês; ela abriu o seu xaile;
aceitou-me misericordiosamente. Agora, à noitinha (enquanto Eleutério, no clube
da Rua Nova-do-Carmo, jogava a manilha), eu tinha ali na alcova da Adélia a
radiante festa da minha vida. Levara para lá um par de chinelas, era o eleito
do seu seio. às nove e meia, despenteada, envolta à pressa num roupão de flanela,
com os pés nus, acompanhava-me pela escadinha de trás, colhendo em cada degrau,
nos meus lábios, um beijo lento e saudoso. Adeus, Delinha! Agasalha-te,
riquinho!
E eu recolhia devagar ao Campo de
Santana, ruminando o meu gozo! O Verão passou, languidamente. Os primeiros
ventos de Outono levaram as andorinhas e as folhagens do Campo de Santana; e
logo nesse Outubro, de repente, a minha vida se tomou mais fácil, mais larga. A
Titi mandara-me fazer uma casaca; e eu estreei-a, com permissão dela, indo ouvir
a São Carlos o Poliuto, ópera que o Doutor Margaride recomendara, como repassada
de sentimentos religiosos e cheia de elevada lição. Fui com de, de luvas
brancas, frisado. Depois, no outro dia, ao almoço, contei à Titi o devoto
enredo, os ídolos derrubados, os cânticos, as fidalgas que estavam nos
camarotes, e de que lindo veludo vestia a rainha.
E sabe quem me veio falar, Titi?
O barão de Alconchel, o ricaço, tio daquele rapaz que foi meu condiscípulo.
Veio apertar-me a mão; esteve um bocado comigo no salão... Tratou-me com muita
consideração. A Titi gostou desta consideração. Depois, tristemente, como um
moralista magoado, queixei-me do nédio decote de uma senhora imodesta, nua nos
braços, nua no peito, mostrando toda essa carne, esplêndida e irreligiosa, que
é a desolação do justo e a angústia da Igreja. Jesus, Senhor, que vexame!
Acredite a Titi, estava com nojo! A Titi gostou deste nojo. E passados dias,
depois do café, quando eu me dirigia, ainda de chinelas, ao oratório, a fazer
uma curta petição às chagas do nosso Cristo de ouro, a Titi, já de braços
cruzados e sonolenta, disse-me dentre a sombra do lenço: está bom, se queres,
volta hoje a São Carlos... E lá quando te apetecer, não te acanhes, tens
licença, podes ir gozar um bocado de música... Agora que estás um homem, e que
parece que tens propósito, não me importa que fiques fora, até às onze ou onze
e meia... Em todo o caso a essa hora quero estar já de porta fechada, e tudo
pronto, para começarmos o terço.
Ela
não viu o triunfante lampejar dos meus olhos. Eu murmurei, requebrado, a
babar-me de gosto devoto: lá o terço, Titi, lá o meu querido terço não perdia
eu, nem pelo maior divertimento... Nem que El-Rei me convidasse para um
chazinho no paço!» In Eça de Queirós, A Relíquia, 1887, Typographia de A. J. da Silva
Teixeira, Porto, 1887, Editora Livros do Brasil, Obras de Eça de Queirós, 2011,
ISBN 978-989-711-008-5.
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