«(…) Ela odeia a própria
ambiguidade, não se sente nem um pouco melhor do que todos os pérfidos membros
da corte, mas não encontra coragem para dizer a que ponto abraçou a nova fé.
Não poderia encarar o desapontamento de Mary. Esta é uma mulher cuja vida foi
uma série de grandes desapontamentos, e Katherine não suportaria provocar mais
um, mesmo que pequeno, dizendo a verdade. Hummm, Mary murmura. Quem dera
fossem. Quem dera fossem. Ela manuseia distraidamente um rosário, suas contas
tilintando conforme desliza os dedos pelo cordão de seda. E esta é a sua
enteada? Sim, senhora. Deixe-me apresentar-lhe Margaret Neville. Meg dá um
passo hesitante à frente e abaixa-se fazendo uma reverência profunda, como lhe
ensinaram. Chegue mais perto, Margaret, Mary ordena, e sente-se, sente-se. Ela aponta
para uma banqueta a seu lado. Agora, diga-me sua idade. Tenho dezassete anos,
senhora. Dezassete. E está prometida para alguém, imagino. Sim, senhora, mas
ele faleceu. Katherine a instruíra a dizer isso. Não seria adequado tornar
público que o seu noivo era um dos enforcados por traição após a Peregrinação
da Graça. Bem, teremos que encontrar um substituto, não é?
Só Katherine parece notar a cor
esvair-se do rosto de Meg. Pode ajudar a sua madrasta a vestir-me. A missa não
tem fim. Meg está impaciente e a mente de Katherine vagueia lembrando Seymour
e seu olhar desconcertante, aqueles olhos azuis. Só de pensar nele já fica
perturbada, contrai-se por dentro. Ela se força a lembrar a pena ridícula
balançando e a ostentação, tudo exagerado, e concentra-se de novo na cerimónia.
Lady Mary parece tão frágil que é espantoso que consiga carregar o bebé, redondo
e robusto. O bispo Gardiner, que tem o rosto polpudo, como se fosse feito de
cera derretida, preside à cerimónia. Ele demora, e a sua voz, lenta e interminável,
deixa o latim feio. Katherine só consegue pensar nele interrogando sua irmã,
aterrorizando-a, nisso e no dedo do pobre rapaz do coral. Dizem que Gardiner
tramou nos últimos anos para ficar mais e mais perto do rei, que procura os seus
conselhos tanto quanto os do arcebispo. A criança berra, com o rosto vermelho,
sem descanso, até a água benta ser derramada sobre a sua cabeça. Então fica
completamente quieta, como se Satã tivesse sido expulso, e Gardiner adopta uma
expressão presunçosa, como se fosse feito seu, e não de Deus.
O rei não está presente. E
Wriothesley, o pai da criança, parece perturbado. É um homem com cara de
doninha, um ar permanente de desculpas e uma tendência a fungar; é lorde do
selo privado e alguns dizem que tem as rédeas da Inglaterra nas mãos junto com
Gardiner, mas não se imaginaria aquilo olhando para ele. Katherine repara em
seus olhos cor de barro que vão com frequência até à porta, ansiosos, enquanto
estala os dedos distraidamente, de modo que um leve claque cartilaginoso pontua
a fala monótona de Gardiner. Uma desfeita como aquela poderia significar
qualquer coisa em um rei cujos desejos mudam de uma hora para outra; o lorde do
selo privado pode ter as rédeas da Inglaterra nas mãos, mas isso não significa
nada sem a protecção dele. Wriothesley deveria saber tudo sobre os caprichos do
rei: afinal de contas, foi um dos homens de Cromwell, outro em quem não se pode
confiar, mas conseguiu escapar e se desvencilhar de sua companhia assim que a
maré virou.
Ao
final, todos formam uma fila atrás de lady Mary, que segura firme no braço de
Susan Clarencieux, como se fosse desabar. As suas damas a seguem pela longa
galeria, passando diante de uma multidão de cortesãos que se abre conforme ela
se aproxima. Seymour está entre eles, e duas das garotas mais jovens dão
risadinhas tolas quando ele sorri e levanta o chapéu com aquela pena ridícula
na direcção delas. Katherine desvia os olhos, fingindo estar fascinada com o
comentário da velha lady Butte sobre o modo de se vestir dos jovens, a interpretação
livre da lei suntuária e o que foi que aconteceu com a cortesia. No seu tempo
as coisas eram diferentes, a mulher continua, e ninguém mais sabe mostrar
respeito pelos mais velhos? Katherine ouve de leve Seymour dizer seu nome com
algum galanteio sobre as suas jóias, sem dúvida insincero. Ela olha brevemente na
sua direcção fazendo um aceno rígido com a cabeça antes de se voltar para o
desfile de comentários tediosos de lady Butte». In Elizabeth Fremantle, Xeque-mate da
Rainha, 2013, Editora Paralela, Editora Schwarcz, 2016, ISBN 978-858-439-003-8.
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