domingo, 21 de outubro de 2018

Correspondência. António J Saraiva e Luísa Dacosta. «O que haveria para lá do Marão? Segundo o primo Jorge, que já tinha ido ao Porto, pouca coisa: mais casas e mais ruas. Só?! Estranhara»

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«(…) Outra tarefa fundamental gira à volta da Inquisição (maldita) e seus processos ante-kafkianos, iluminando o caso de Manuel Fernandes de Vila Real, quando pede colaboração activa a Luísa Dacosta (um frete, diz ele), em termos de bibliografia inexistente em Paris. Ela providencia, ainda, jornais, revistas e tabaco Português Suave, ou envia fotografias da família. Entre mil desculpas, recebe um lembrete, que estendemos ao leitor: tome nota, a minha Amiga é a pessoa a quem mais escrevo. Donde, a importância desta correspondência para melhor conhecer Saraiva e parte do nosso mundo até 20 de Dezembro de 1965.
A pouco e pouco, vamos percebendo que, entre Estética e Política, sobressai uma Moral, demonstrado que fica o desnivelamento entre o progresso técnico e o progresso moral. Não é só o engodo das civilizações orientais; Saraiva tem à mão prenúncios de Maio de 68, a que assiste, retomando em Maio e a Crise da Civilização Burguesa (1970) o debate aqui esboçado sobre a Burguesia e o Progresso. Em ambos os textos, conclui que, a existir transformação do mundo, será obra de uma mudança espiritual. As 60 missivas (incluindo a que vai em anexo) foram cedidas por Luísa Dacosta, passando de Leonor Curado Neves ao actual editor literário, que as transcreveu e anotou. Os sublinhados surgem em itálico. Procedemos a desdobramentos, completámos palavras, houve rara actualização ortográfíca (Ant. - António; c. - cada; gr. - grande; Hist. - História; mãi - mãe; m/ - minha; mt - muito; p. - para; pq - porque; quási - quase; s/ - sua; tb - também; etc.). Conclui-se de algumas ausências (postais, sobretudo), perdidas ou interceptadas. Também perdida ficou alguma, ou ficaram algumas, de 1966, talvez nas mãos daquela nossa malograda Amiga, porquanto refere uma carta enviada a Luísa Dacosta a 8 de Dezembro de 1966, em António José Saraiva e Óscar Lopes: Correspondência. O tríptico epistolar fechará com a correspondência de António José Saraiva dirigida a Teresa Rita Lopes.

Luísa Dacosta, nome civil, Maria Luísa Saraiva Pinto dos Santos, nasceu em Vila Real (16 de Fevereiro de 1927), cujo tempo, longe, evocou em 2004:

Houve um tempo, em que uma montanha azul, de um azul amassado com violetas, fechava o horizonte do quintal, mesmo quando empoleirada na japoneira, seu mastro de aventuras, sonhava entre o perfume das rosas e dos lilases. Longe, na infância... Na minha primeira infância o mundo não existia, fora dos mapas ou do globo terrestre. Não havia telefone, nem rádio, nem televisão. Só os grandes liam o jornal e lhe recortavam o Pim Pam Pum, às quintas-feiras. Assim, às vezes no meio do sonho ou das leituras, que a prendiam, quando estirada no ramo da japoneira, pensava no que a esperaria para lá do Marão, quando saísse do confinamento, aconchegante, da cidadezinha, onde todos se conheciam e ninguém era anónimo, nem mesmo os pobres. [...] O que haveria para lá do Marão? Segundo o primo Jorge, que já tinha ido ao Porto, pouca coisa: mais casas e mais ruas. Só?! Estranhara. Não podia acreditar. O primo Jorge, companheiro de brincadeiras, devia estar enganado e olhara apressadamente. Mesmo no Porto, sabia pelo pai, havia ópera e concertos. Na altura o seu compositor preferido era Grieg, porque um primo tocava ao piano a canção de Solveig e o que a tentava eram outros horizontes mais vastos e uma liberdade, que poria fim àquela estreiteza, ritual e repetitiva, de todos os anos. Natal, Janeiras, Reis, matança do porco, S. Brás, onde as namoradas compravam ganchas, que imitavam o báculo do santo, para o seu rapaz. Seguia-se o Carnaval e a festa do colégio. Depois da mi-carême, vinha a Páscoa, o folar e o enterro, anual, do Senhor. O santo António, dia da cidade , trazia a feira anual e maior, com barracas, circo e fogo-de-artifício farto e, logo depois, a dos pucarinhos de Bisalhães, pelo S. Pedro. Com o Verão havia música no coreto do Jardim da Carreira e faziam-se preparativos para as férias na Póvoa de Varzim. […]

In António José Saraiva e Luísa Dacosta, Correspondência, edição de Ernesto Rodrigues, Gradiva, Lisboa, 2011, ISBN 978-989-616-455-3.

Cortesia de Gradiva/JDACT