13
de Julho de 1793
«(…) Desta vez não adormecera
desleixadamente. Quando decidiu dormir, fechou o diário e embrulhou-o numa bata
que usava para os trabalhos no jardim. Colocou-o debaixo de outras roupas no
gavetão da cómoda. A letra era muito difícil de perceber, papel escrito e
rasurado com frequência, má caligrafia, feita à pressa, escrita ilegível
propositadamente para ninguém o ler? Quem poderia saber? Apenas conseguiu traduzir
três páginas e depreendeu tratar-se do diário de alguma das concubinas iniciado
na ilha da Madeira, provavelmente já depois de muitos dias à deriva no oceano,
pois já se sabia que entre Rabat e o arquipélago demoraram pelo menos oito
dias. O que lera intrigara-o imenso, mas colocarem o diário na sua bolsa, por
si só, revelava-se desconcertante. Uma coisa era certa, referia-se a um registo
íntimo sobre a agruta que aquelas mulheres haviam passado, em inacreditáveis
condições.
A nau, apenas preparada para a
viagem de um dia, no máximo dois se algum percalço ocorresse, teve de enfrentar
o oceano. Ninguém sabia com que comida haviam sobrevivido. Esteve quatro horas
debruçado à luz da vela e, na impaciência do alongar da noite, folheou todo o
diário em busca de um nome, algo que lhe desse a entender a pessoa por trás
daquele gesto, mas nada. Porém, quando se preparava para abandonar a tradução,
encontrou um estranho parágrafo:
Na verdade, neste constante ir e
vir das marés, num conjunto aparentemente homogéneo de mulheres obedientes ao
seu sultão, nem todas albergam o mesmo sentimento. Há quem disfarce o prazer que
teria a morte. As que disfarçam a alegria por estarem perdidas, com sorte
engolidas por este mar.
Benzeu-se e disse em voz baixa:
pelo sinal da santa cruz, livre-nos Deus Nosso Senhor dos nossos inimigos. Afastou-se
do objecto tentando escondê-lo o melhor possível. E teve a certeza: se queria
entender o que se passava naqueles barcos, bem como as razões de quem o
escrevera e se desfizera dele, teria de o ler palavra a palavra, vírgula a
vírgula, tal qual um pacto, ou a atenção que os traiçoeiros contratos com
desconhecidos costumam levantar. Dormiu demais e, atordoado, percebeu que a
hora do encontro seria dali a pouco menos de quarenta minutos. Um coche vinha buscá-lo,
mas nem um trapo passara no corpo a disfarçar os odores deixados pela noite de
Verão. E perturbava-o imenso ter de devolver aquele caderno sem perceber porque
viera afinal até si. Mas também não posso mantê-lo comigo.
Duas possibilidades se afiguravam
válidas. Entregar o diário ao ministro e delegar a tarefa, ou seja, deixar que
as autoridades decidissem se devia ser lido ou não, contando toda a verdade,
apenas omitindo que dera conta do misterioso objecto ainda antes de se terem
reunido. Ou, num momento que conseguisse escapar das vistas de todos, pousar o
diário a bordo, e deixar o destino encaminhá-lo para longe de si, indiferente
às consequências dessa acção. Frei João coçou a cabeça, sentado sobre a colcha
amarfanhada e pensando sobre o que fazer. Ouviu os passos da pessoa que o
chamava a bons pulmões, desassossegando-o de imediato.
Uma brisa com planos de ser vento
norte, mais tarde, caracterizava o rio naquele novo dia. A nau deslizava vagarosamente
de um lado para o outro, como pêndulo preguiçoso. Faça favor de subir, exclamou
o arrais, com um sorriso que dava mais uma ordem do que pura afabilidade. Frei
João queria tudo menos voltar àquele barco sem a companhia, leia-se protecção,
do ministro, mas não havia alternativa. O arrais, que misturava com perícia o
tabaco e o kif, perante a atrapalhação do frade, indicou a um criado que
o auxiliasse na subida. Empurrado pelas circunstâncias, viu-se de novo dentro
da mesma salinha onde um cortinado se remexera com alma de gente e onde aquele
arrais, agora tão solícito e presente, o tinha tratado de modo distante». In
Raquel Ochoa, As noivas do Sultão, 2015, Edições Parsifal, 2015, ISBN
978-989-876-008-1.
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