sábado, 13 de outubro de 2018

Memorial do Convento. José Saramago. «Enfim, pior que a vergonha de esperar o francês e ver chegar o bacalhau, seria contar com o bacalhau e entrar o francês. Sete-Sóis concorda, mas imagina-se na pele dos soldados…»

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«(…) Levar este pão à boca é gesto fácil, excelente de fazer se a fome o reclama, portanto alimento do corpo, benefício, do lavrador, provavelmente maior benefício de alguns que entre a foice e os dentes souberam meter mãos de levar e trazer e bolsas de guardar, e esta é a regra. Não há em Portugal trigo que baste ao perpétuo apetite que os portugueses têm de pão, parece que não sabem comer outra coisa, por isso os estrangeiros que cá moram, doridos das nossas necessidades, que em maior volume frutificam que sementes de abóbora, mandam vir, das suas próprias e outras terras, frotas de cem navios carregados de cereal, como estes que entraram agora Tejo adentro, salvando à torre de Belém e mostrando ao governador dela os papéis do uso, e desta vez são mais de trinta mil moios de pão que vêm da Irlanda, e é a abundância tal, fome que finalmente deu em fartura, enquanto em fome se não tornar, que, achando-se cheias as tercenas e também já os armazéns particulares, andam por aí a alugar depósitos por todo o dinheiro, e põem escritos nas portas da cidade para que conste às pessoas que os tiverem para alugá-los, com que desta vez se vão arrepelar os que mandaram vir o trigo, obrigados pelo excesso a baixar-lhe o preço, tanto mais que se fala em próxima chegada de uma frota da Holanda carregada do mesmo género, mas desta virá a saber-se que a assaltou uma esquadra francesa quase na entrada da barra, e assim o preço, que ia baixar, não baixa, se for preciso deita-se fogo a um celeiro ou dois, mandando em seguida apregoar a falta que o trigo ardido já está fazendo, quando julgávamos que havia tanto e de sobra. São mistérios mercantis que os de fora ensinam e os de dentro vão aprendendo, embora estes sejam ordinariamente tão estúpidos, de mercadores falamos, que nunca mandam vir eles próprios as mercadorias das outras nações, antes se contentam com comprá-las aqui aos estrangeiros que se forram da nossa simplicidade e forram com ela os cofres, comprando a preços que nem sabemos e vendendo a outros que sabemos bem de mais porque os pagamos com língua de palmo e a vida palmo a palmo.


Porém, morando o riso tão perto da lágrima, o desafogo tão cerca da ânsia, o alívio tão vizinho do susto, nisto se passando a vida das pessoas e das nações, conta João Elvas a Baltasar Sete-Sóis o formoso passo bélico de se ter armado a marinha de Lisboa, de Belém a Xabregas, por espaço de dois dias e duas noites, ao mesmo tempo que em terra tomavam posições de combate os terços e a cavalaria, porque correra a nova de que vinha uma armada francesa a conquistar-nos, hipótese em que qualquer fidalgo, ou plebeu qualquer, seria aqui outro Duarte Pacheco Pereira, e Lisboa uma nova praça de Diu, e afinal a armada invasora transformou-se em uma frota de bacalhau, que boa falta estava fazendo, como não tardou a ver-se pelo apetite. De riso murcho souberam os ministros a notícia, de riso amarelo largaram os soldados às armas e os cavalos, mas foram altas e estrepitosas as gargalhadas do vulgo, assim desforrado de não poucas vexações. Enfim, pior que a vergonha de esperar o francês e ver chegar o bacalhau, seria contar com o bacalhau e entrar o francês. Sete-Sóis concorda, mas imagina-se na pele dos soldados que esperavam a batalha, sabe como bate então o coração, que irá ser de mim, se daqui a pouco ainda estarei vivo, apura-se um homem à altura da possível morte e depois vêm dizer-lhe que estão a descarregar fardos de bacalhau na Ribeira Nova, se os franceses vêm a saber do engano, ainda se rirão mais de nós. Vai Baltasar para ter outra vez saudades da guerra, mas lembra-se de Blimunda e lança-se a querer averiguar de que cor são os olhos dela, é uma guerra em que anda com a sua própria memória, que tanto lhe lembra uma cor como outra, nem os seus próprios olhos conseguem decidir que cor de olhos estão vendo quando os têm diante. Desta maneira se esqueceu das saudades que ia sentir, e responde a João Elvas, Devia era haver maneira certa de saber quem vem e o que traz ou quer, sabem-no as gaivotas que vão pousar nos mastros, e nós, a quem mais importaria, não sabemos, e o soldado velho disse, As gaivotas têm asas, também as têm os anjos, mas as gaivotas não falam, e de anjos nunca vi nenhum». In José Saramago, Memorial do Convento, Editorial Caminho, O Campo da Palavra, 27ª Edição, 1998, ISBN 972-21-0026-2.

Cortesia de Caminho/JDACT