quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Cravos de Papel. 1922. Poesia. Eugénio de Castro. «A essência de um povo espremida com mãos de mestre, numa linha cruel, porém divertida, irónica, porém eficaz, elegante, porém realista…»

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O Suão
«Em tarde quente, de Agosto,
do sol na agonia flava,
soprou, de súbito, um vento
soturno, que amolentava.

O Serafim, conversando
no cruzeiro co’a comadre.
Clama: cá temos o suão,
que queima a vinha do padre!

Que é isso?, pregunta a velha,
que foi bem bonita em moça;
volve logo o Serafim:
Não sabe? Pois então ouça!

E assentado num degrau
da cruz doirada p’lo ocaso,
limpando o suor com o lenço,
contou o seguinte caso.

Damião das Casas-Novas,
sem ter altar, era um santo;
era no dar um mãos-rôtas.
ninguém dava mais, nem tanto!

Adivinhava as misérias,
para logo as socorrer;
e, para amparar famílias,
nunca família quis ter.

Rotinho, vestia os outros
com mão de pai, muito amiga…
Certa manhã, na Quaresma,
lá vai ele à desobriga.

Velhinho, na sacristia,
dobra os joelhos emperrados…
Rebusna o padre, e enfim clama
diga lá os seus pecados!

Damião busca e rebusca,
mas nada tem que dizer…
Grita o prior: desembuche,
que eu tenho mais que fazer!




Mas Damião nada diz…
Que há-de dizer? Só faz bem…
Porém, o padre é frenético,
e afinal não se contém.

Veja lá! Grande ou pequena,
na alma há sempre uma chaga!
Não pecou por pensamentos?
Não rogou alguma praga?

Roguei! Roguei!, diz, submisso
e a soluçar, Damião
roguei uma praga foi,
p’lo que peço a Deus perdão!

Do prior a voz espessa
então, colérica, troa
praguejar é grave falta,
que o próprio Deus mal perdoa!

A praga é uma bofetada
que se dá na Caridade!
Quem o mal deseja aos outros
acha o mal na Eternidade.

Ouça bem o que lhe digo
nesta cadeira onde estou!
E contra quem foi, confesse,
que essa tal praga rogou?

Arrependido, a tremer,
o pobre do Damião
responde com voz humilde
foi contra o vento suão!

Foi contra o vento suão?
Diz o prior admirado.
Andou você muito bem!
Isso é um vento estuporado!

Esse vento merecia
rodado ser por mil rodas!
Há-de haver uns oito meses,
Queimou-me as videiras todas!

De contrição diga o acto,
vou dar-lhe a absolvição…
Raios partam esse vento!
Leve o Diabo tal suão!»

In Eugénio de Castro, Cravos de Papel, Empresa Internacional Editora Lumen, edição com tiragem especial, Lisboa, Porto, Coimbra, 1922.

Cortesia de Lumen/JDACT