terça-feira, 1 de setembro de 2015

O Pecado Espanhol. Carlota Joaquina. Marsilio Cassotti. «… a infanta surge sentada num berço forrado a veludo vermelho acolchoado, que mais do que uma pequena cama parece um luxuoso porta-jóias, enquanto brinca com um colar de pérolas e uma fita de seda azul-celeste…»

Carlota Joaquina retratada por Mengs, antes de fazer 1 ano de idade 
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Ninguém sabe mentir tão elegantemente como a rainha (1775-1780
«(…) Pouco depois da aclamação de dona Maria ao trono, a mãe de dona Carlota Joaquina deu à luz pela terceira vez, uma infanta nascida a 11 de Setembro de 1777 que recebeu o nome da sua progenitora e que possivelmente terá reparado o sofrimento dos abortos que a mãe tinha sofrido anteriormente. Nos doze anos que a princesa já tinha de casada, tinha conseguido apenas que duas filhas sobrevivessem, o que certamente não a tranquilizava. Paradoxalmente, enquanto Portugal via pela primeira vez em seis séculos a subida ao trono de uma mulher por via hereditária, em Espanha, onde tinha havido duas rainhas soberanas, essa possibilidade encontrava-se vedada desde 1700, quando após a chegada da dinastia Borbón ao trono tinha sido instaurada a Lei Sálica, em vigor em França, pátria de origem desta linhagem. Como mandava a tradição desde a época dos reis francos, pertencentes à tribo dos sálios, a dita lei proibia às mulheres herdar a coroa. As preocupações de dona Maria Luísa estavam relacionadas com a possibilidade de, se não conseguisse dar filhos varões ao marido, o sucessor deste ser o infante Gabriel, irmão do marido e filho preferido do rei.
Neste sentido, seria revelador que no ano anterior a princesa das Astúrias tivesse mandado pintar um quadro da sua filha primogénita, o primeiro de dona Carlota Joaquina que se conhece. Não se trata de uma imagem normal em forma de medalhão que os pais, incluindo as famílias reais, costumavam mandar fazer da sua vasta prole, mas uma obra com as dimensões e características que se utilizavam para o autêntico retrato de corte. Se, além disso, tivermos em conta que a retratada nem sequer tinha um ano quando a pintura foi executada, tudo leva a pensar que se quis realçar a importância desta criança. O facto é que não se conhece retratos semelhantes das suas irmãs. Por outro lado, foi escolhido para o realizar Anton Mengs, o pintor da corte que só trabalhava sob as ordens do rei, pelo que é possível que a encomenda do retrato de dona Carlota tenha sido ideia do avô.
Em todo o caso, este artista judeu, convertido ao catolicismo quando era pintor da corte papal, teve a capacidade de representar a neta preferida do monarca tal como este gostaria que passasse para a opinião da História, realizando ao mesmo tempo uma obra de grande qualidade. Embora a crítica actual não seja tão generosa com Mengs como foram os seus contemporâneos, que o chegaram a considerar quase um génio do neoclassicismo, não se lhe pode negar que fez uso de uma subtil capacidade de observação no caso da pequena Carlota. No seu retrato, a infanta surge sentada num berço forrado a veludo vermelho acolchoado, que mais do que uma pequena cama parece um luxuoso porta-jóias, enquanto brinca com um colar de pérolas e uma fita de seda azul-celeste, rodeada por uma profusão de rendas. Se não fossem os seus grandes e imperiosos olhos negros, ninguém diria que se trata da rainha de Portugal que a iconografia tradicional posterior apresentará como uma mulher de pele esverdeada, traços irregulares e olhar magoado.
A maçaneta de ouro fino cinzelado que se pode ver numa das esquinas do berço evoca o ambiente palaciano de Aranjuez, onde a família real espanhola costumava passar a Primavera. Em nítido contraste com o protocolo, as pernas em movimento da infanta parecem querer rebelar-se contra o luxo. Talvez um gesto espontâneo de aborrecimento captado pelo pintor, enquanto a menina tentava sair de cima do cobertor de seda vermelha coberto de flores de renda que a sufocava, para assim poder gozar da brisa que entrava por uma das janelas do palácio construído nas margens do Tejo». In Marsilio Cassotti, Carlota Joaquina, O Pecado Espanhol, tradução de João Boléo, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-626-170-2.

Cortesia EdosLivros/JDACT