Ninguém
sabe mentir tão elegantemente como a rainha (1775-1780
«(…) Pouco depois da aclamação de
dona Maria ao trono, a mãe de dona Carlota Joaquina deu à luz pela terceira
vez, uma infanta nascida a 11 de Setembro de 1777 que recebeu o nome da sua progenitora e que possivelmente terá
reparado o sofrimento dos abortos que a mãe tinha sofrido anteriormente. Nos
doze anos que a princesa já tinha de casada, tinha conseguido apenas que duas
filhas sobrevivessem, o que certamente não a tranquilizava. Paradoxalmente,
enquanto Portugal via pela primeira vez em seis séculos a subida ao trono de
uma mulher por via hereditária, em Espanha, onde tinha havido duas rainhas
soberanas, essa possibilidade encontrava-se vedada desde 1700, quando após a chegada da dinastia Borbón ao trono tinha sido
instaurada a Lei Sálica, em vigor em França, pátria de origem desta
linhagem. Como mandava a tradição desde a época dos reis francos,
pertencentes à tribo dos sálios, a dita lei proibia às mulheres herdar a
coroa. As preocupações de dona Maria Luísa estavam relacionadas com a
possibilidade de, se não conseguisse dar filhos varões ao marido, o sucessor deste
ser o infante Gabriel, irmão do marido e filho preferido do rei.
Neste sentido, seria revelador
que no ano anterior a princesa das Astúrias tivesse mandado pintar um quadro da
sua filha primogénita, o primeiro de dona Carlota Joaquina que se conhece. Não
se trata de uma imagem normal em forma de medalhão que os pais, incluindo as
famílias reais, costumavam mandar fazer da sua vasta prole, mas uma obra com as
dimensões e características que se utilizavam para o autêntico retrato de
corte. Se, além disso, tivermos em conta que a retratada nem sequer tinha um
ano quando a pintura foi executada, tudo leva a pensar que se quis realçar a
importância desta criança. O facto é que não se conhece retratos semelhantes
das suas irmãs. Por outro lado, foi escolhido para o realizar Anton Mengs, o
pintor da corte que só trabalhava sob as ordens do rei, pelo que é possível que
a encomenda do retrato de dona Carlota tenha sido ideia do avô.
Em todo o caso, este artista
judeu, convertido ao catolicismo quando era pintor da corte papal, teve a
capacidade de representar a neta preferida do monarca tal como este gostaria
que passasse para a opinião da História, realizando ao mesmo tempo uma obra de grande
qualidade. Embora a crítica actual não seja tão generosa com Mengs como foram
os seus contemporâneos, que o chegaram a considerar quase um génio do
neoclassicismo, não se lhe pode negar que fez uso de uma subtil capacidade de
observação no caso da pequena Carlota. No seu retrato, a infanta surge
sentada num berço forrado a veludo vermelho acolchoado, que mais do que uma
pequena cama parece um luxuoso porta-jóias, enquanto brinca com um colar de
pérolas e uma fita de seda azul-celeste, rodeada por uma profusão de rendas.
Se não fossem os seus grandes e imperiosos olhos negros, ninguém diria que se trata
da rainha de Portugal que a iconografia tradicional posterior apresentará como
uma mulher de pele esverdeada, traços irregulares e olhar magoado.
A
maçaneta de ouro fino cinzelado que se pode ver numa das esquinas do berço
evoca o ambiente palaciano de Aranjuez, onde a família real espanhola costumava
passar a Primavera. Em nítido contraste com o protocolo, as pernas em movimento
da infanta parecem querer rebelar-se contra o luxo. Talvez um gesto espontâneo
de aborrecimento captado pelo pintor, enquanto a menina tentava sair de cima do
cobertor de seda vermelha coberto de flores de renda que a sufocava, para assim
poder gozar da brisa que entrava por uma das janelas do palácio construído nas
margens do Tejo». In Marsilio Cassotti, Carlota Joaquina, O Pecado Espanhol, tradução de
João Boléo, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-626-170-2.
Cortesia
EdosLivros/JDACT