terça-feira, 1 de setembro de 2015

Os Venturosos. Alexandre Honrado. «… mas, e os reis? Os reis sabiam sempre tudo e de tudo, mesmo o que ignoravam sabiam-no melhor do que ninguém… Os reis podiam nascer anormais, ou doidos, ou feios como bodes, podiam ser íntegros, desbragados…»

jdact e rosa ramalho

«(…) Dizem que o vício de Ataíde não é raro cá pelo reino, declarou espantosamente um frade de voz aflautada que raras vezes falava. Como sabeis?, quis um outro saber. Ouvi contar que num convento... O relato foi, de pronto, interrompido pelo cardeal: … bom, e adiante, que frei Nicolau fale com el-rei que eu tomarei outras medidas. Rachem-me o coiso a esse enrabad…, ouviu-se gritar. Que linguagem desbragada usam estes santos homens, pensou o cardeal. Nem parecem homens de saber que até falam latim e citam, autorizados, palavras divinas. É melhor avisar os do paco que vão resguardando seus c…, sentenciou frei Nicolau. E a reunião foi dada como finda. Simão Cordovil, alheado da discussão, dava tudo para poder sentar-se.
Em todas as latitudes, longitudes e lugares há verdadeiros imbecis, apreciava el-rei em seu pensar mais profundo. Alguém lhe contara, ou melhor, lhe espevitara a memória contando-lhe uma história que ouvira muito mais que trezentas vezes repetida, esquecendo-a depois, que memória de rei não tem os caprichos de memória vulgar. A história era esta: o navegador Vasco chegara a um lugar cheio de primitivas criaturas, umas alimárias fedorentas sem jeito nenhum e a quem chamavam Bosquímanos, e resolveu tratá-los como se fossem gente ou como se a alma tivessem e dela fossem hábeis no usar.
Com deferência, Vasco mostrou-lhes ouro, pérolas, e, mais preciosas coisas ainda, como o cravinho e a canela. As grandes bestas índias nem se emocionaram, nem palpitaram, pareciam ver coisa banal ou mesmo nada verem, uma inquietação desesperante. Quando Vasco, insistente, lhes estendeu frivolidades, contas de vidro, anéis de estanho, guizinhos sonoros e barretes vermelhos desses que os marinheiros usam a bordo e que certa gente do povo aproveita para usar para seu dormir aconchegado com sonhos aquecidos e cabeças isentas de relentos, então, e só então, ficaram os idiotas maravilhados.
As bestazinhas índias, felizes da vida e das oferendas, foram buscar brincos de conchas e rabos de lobo ou de chacal, alguns amarrados a canos de madeira, e ofereceram-nos a Vasco e aos seus, que se fingiram contentes com tamanhos alarves e suas alarvidades... El-rei recordava a história e ria. Tinha razões para rir. Satisfeito com o tratamento da bruxa, o monarca gozava mais e melhor os seus lazeres, as chagas doíam-lhe menos, ouvia histórias, contava-as, e ganhara o estranho hábito de pensar.
Nessa tarde, el-rei pensava. Pensava, por exemplo, que ser senhor de um grande reino é coisa tão fácil como ser dono de um quintal comn três galinhas. E que os homens são tão estúpidos porque nascem estúpidos e não há luz no mundo que os torne espertos senão a luz imaculada que faz com que alguns nasçam reis e, portanto, sem esforço sempre sábios e sempre autorizados.
Os padres sabiam latins e citações; os astrónomos sabiam de estrelas; os índios só de conchas, do luar, ou de outras parvoeiras; os físicos de pústulas e achaques e muito pouco de varizes…; mas, e os reis? Os reis sabiam sempre tudo e de tudo, mesmo o que ignoravam sabiam-no melhor do que ninguém… Os reis podiam nascer anormais, ou doidos, ou feios como bodes, podiam ser íntegros, desbragados, gostar de homens, de mulheres, odiarem tudo e todos, que os respeitariam... Diante do espelho, el-rei contemplou-se e sorriu. Que bela imagem, que porte o de um rei assim, mesmo com faces de coirão irremediável. Afagou o ventre, rodeando-o depois com seus braços desmesurados. Gostava de si, isso bastava-lhe. E é que gostava mesmo muito... Irra, que ventura!» In Alexandre Honrado, Os Venturosos, Círculo de Leitores, Braga, 2000, ISBN 972-42-2392-2.

Cortesia de CLeitores/JDACT