Oriol
Turmeda. Barcelona
«Oriol Turmeda subiu a um banquinho
para alcançar a lata onde se guardavam as fotografias familiares. Durante anos,
aquela caixa que continha a memória gráfica da família tinha permanecido arrumada
numa prateleira acessível às crianças da casa, porque ver os retratos do avô Francesc,
com o seu bigode retorcido, da avó Mariona, a posar com porte aristocrático no átrio
do liceu, precisamente alguns minutos antes de o anarquista Santiago Salvador atirar
uma bomba na plateia, ou da tia Nuria a fazer castelos de areia nas praias de Sitges,
constituía o melhor passatempo para elas. Oriol Turmeda calculou que fora o seu
pai, Jaume Turmeda, a esconder os instantâneos antes de adoecer, com o objectivo
de o dissuadir de imitar os passos do tio Quimet. Este, contra todas as previsões,
fizera fortuna instalando um estúdio fotográfico numa rua movimentada da cidade,
mas o pai lembrava-se dele envolto numa aura boémia, a vender os prodígios da
câmara escura nas ruas de Sitges com o descaramento de um charlatão de feira. Tinha
chegado a Blanca Subur, como chamavam à povoação, no despontar da década de vinte,
na mesma barafunda dos veraneantes e de uma juventude que importava ares europeus,
não só na maneira de vestir, mas também no ócio, no gosto pela arte e um sem-fim
de vanguardismos, como eles mesmos assinalavam.
Na altura, a próspera indústria de
chapelaria do patriarca Francesc Turmeda estava em pleno apogeu, circunstância que
o tornou extremamente receoso na hora de condescender com a filha, uma rapariga
na casa dos vinte anos, que cometera o despropósito de se apaixonar pelo retratista
que aguardara, com paciência de asceta, que uma borboleta pousasse no seu chapéu
para a imortalizar. Núria Turmeda não se intimidou ante o inconveniente de se ter
apaixonado por um zé-ninguém; confiava demasiado no seu poder de persuasão mas,
sobretudo, numa proverbial lisonja capaz de vencer qualquer melindre do pai. Além
disso, Quimet estava longe de parecer um vulgar caçador de dotes, porque era um
boémio incapaz de imitar a pompa do seu mundo. Núria não se lembrou de algo melhor
do que convidar Quimet para ir a sua casa durante a vigília da Nossa Senhora do
Carmo, depois de os pescadores concluírem a sua vistosa romaria.
Abordou o pai no preciso instante
em que os primeiros convidados se apresentavam no terraço que dava para o mar,
onde se tinham disposto mesas para quarenta comensais e um estrado para três
músicos. Pai, apresento-te Quimet!, exclamou, ao mesmo tempo que lhe mostrava
uma fotografia. Foi ele quem teve a ideia de acrescentar borboletas aos teus chapéus.
Francesc Turmeda, bastante atarefado com os últimos preparativos da festa, que coincidia
com o seu sexagésimo aniversário, não deu grande importância às palavras da filha
nem se deu conta de que aquele jovenzinho famélico, com óculos redondos e um chapéu
rasca da concorrência, não era filho nem parente próximo dos seus convidados, e
que pululava por entre as flores graças ao livre-arbítrio de Núria. Só passada uma
semana é que Francesc se deu conta de que a filha tinha iniciado um romance e fê-lo
quando surpreendeu a sua mulher Mariona e a criada a conversarem na cozinha, interrogando-se
sobre o porquê da súbita falta de apetite da jovem, que se retirava para o seu quarto
na hora da sesta sem ter comido as sobremesas.
Com uma intuição que parecia feminina,
Francesc Turmeda encontrou a cama de Núria vazia; no quarto não estavam as suas
cabaças de flutuação, nem o fato de banho às riscas a arejar no terraço, porém,
apesar se tudo, soube que os levara numa artimanha para, ao regressar, os convencer
de que vinha de um mergulho na água, ainda que o arrojo de não respeitar a sagrada
hora da digestão lhe custasse um castigo de todo o tamanho. Francesc Turmeda
abotoou a camisa, calçou-se, espantou o torpor estival das tardes de Julho e começou
uma batida de sabujo pelo passeio marítimo e pela praia. Ao fim de meia hora
encontrou-os ao abrigo da sombra órfã de umas rochas, de mãos dadas, com os olhares
perdidos na bruma do horizonte. Núria, longe de se amedrontar, levantou-se
energicamente e exclamou: Pai, estava a pensar que tens de encarar muito a sério
a ideia de confeccionar um novo catálogo para os teus clientes! Os Recamier de Paris
e os Colonna de Roma já to pediram mais de uma vez. Estava mesmo afalar disso com
Quimet.
Aquela naturalidade demolidora
com que Núria saía de qualquer transe deixou Francesc Turmeda estupefacto, que,
sem saber muito bem como perdera o seu papel de pai, se sentou com os jovens e começou
a dar ouvidos à proposta da filha. Esses catálogos
que usas são antiquados. Parecem um caderno escolar mal pintado, insistia ela.
Francesc Turmeda sabia que a filha tinha razão, porque ao longo de trinta anos tinha
promovido a empresa familiar por meio de simples escorços mal desenhados, sem ter
em conta os avanços da técnica e quanto o prodígio da fotografia poderia fazer pelas
suas novidades. Apenas três dias depois, Núria e seu irmão Jaume, pai de Oriol,
enfiaram na cabeça, um a um, os setenta modelos de chapéus que o pai fabricava e
posaram ante a objectiva experiente de Quimet das mais diversas formas imagináveis:
sentados em barcas imaculadas, a fazer equilibrismos num velocípede de museu, a
sair de reluzentes tendas de praia ou enterrados na areia até ao pescoço, sem outro
símbolo a não ser um chapéu da firma familiar». In Montserrat Rico Góngora, A Abadia
Profanada, 2007, tradução de Cristina Vaz, Planeta Manuscrito, Lisboa,
2009-2010, ISBN 978-989-657-084-2.
Cortesia de PlanetaM/JDACT