Carta
a António Feliciano Castilho (V)
«(…) O ideal quer dizer isto:
desprezo das vaidades; amor desinteressado da verdade; preoccupação exclusiva
do grande e do bom; desdem do futil, do convencional; boa fe; desinteresse;
grandeza d'alma; simplicidade; nobreza; soberano bom gosto e soberanissimo bom
senso..., tudo isto quer dizer esta palavra de cinco letras, ideal.
Por todos estes motivos ella é
sobremaneira odiavel; ella é desprezivel por todas estas causas; e v. ex.ª tem
toda a razão, chacoteando, bigodeando, pulverisando esse miseravel ideal.
Elle, com effeito, nada do que
elle é ou do que vem d'elle, serve ou pode servir jamais para alguma cousa do
que se procura na vida, do que nella procuram os homens graves, os homens
serios, os homens de senso e gosto como v. ex.ª, que nada querem com ideaes ou
com idêas, mas só com realidades e com tactos; para captar a admiração das turbas;
o applauso das multidões; para formar um grande nome composto de pequeninas lettras;
para merecer os encomios dos grammaticões e o assombro dos burguezes; para ser
das academias; das arcadias; commendador; citado pelos brasileiros retirados do
commercio; decorado pelos directores de collegio; o Tirteu dos mercieiros e um Homero
constitucional.
Para isto é que não serve o
ideal. E é por isso, pela sua absurda inutilidade, que v. ex.ª o apeia com
tanta sem cerimonia do pedestal aonde, para o adorarem, o têm posto os loucos
que nunca foram nada neste mundo, nem das academias nem do conselho de instrucção
publica, um Christo, um Socrates, um Homero...
Por isso é que v. ex.ª faz muito
bem em o destruir, a esse pobre diabo do ideal; de o pôr fóra de casa a bofetões;
de o bannir das suas obras, que não haver por lá nem a mais leve sombra d'elle.
Agradam a todos assim. Os versos de v. ex.ª não têm ideal, mas começam por
letra pequena. As suas criticas não têm idêas, mas têm palavras quantas bastem
para um diccionario de synonimos. Os seus poemas lyricos não são methaphysicos,
não precisam d'uma excessiva attenção, de esforços de pensamento para se compreenderem,
e têm a vantagem de não deixarem ver nem um só ideal. Nas suas obras todas ha
uma falta tão completa d'essas incomprehensibilidades, que deve pôr muito á sua
vontade os leitores que v. ex.ª têm no Brasil. V. ex.ª diz tudo quanto se pode dizer
sem idêas, boa, excellente receita para não cahir nas nebulosidades do ideal.
Os seus escriptos são optimos escriptos, menos as idêas: e é v. ex.ª um grande
homem, menos o ideal.
Dante, que era um barbaro, e
Shakspeare, que era um selvagem, é que rechearam as suas obras de ideal. Victor
Hugo tambem cáe muito nesse defeito. V. ex.ª é que o tem sempre evitado
cautelosamente, e por isso não é um barbaro como Dante, nem selvagem como
Shakspeare, nem um máo poeta como Victor Hugo. Não é Dante, nem Shakspeare, nem
Hugo, mas é amigo do sr. Viale, que falla latim como Mevio e Bavio.
Mas, ex.mo sr., será possivel
viver sem idêas? Esta é que é a grande questão. Em Lisboa, no curso de lettras,
na academia, no conselho superior, no gremio, nos saraus de v. ex.ª, dizem-me
que sim, e que é mesmo uma condição para viver bem. Fóra de Lisboa, isto é, no resto
do mundo, em Paris, Berlim, Londres, Turim, Goettingue, New-York, Boston, paizes
mais desfavorecidos da sorte, na velha Grecia tambem e mesmo na Roma antiga, é
que nunca poderam passar sem essas magnificas inutilidades. Ellas o muito que
têm feito é servirem de entretenimento aos visionarios como Christo (um
metaphysico bem nebuloso), como Socrates, como Çakia-Mouni, como Mahomet, como
Confucio e outros sujeitos de nenhuma consideração social, que se entretinham
fazendo systemas com ellas, e com os systemas religiões, e com as religiões
povos, e com os povos civilisações, e com as civilisações codigos, leis,
sentimentos, amores, paixões, crenças, a alma emfim da humanidade, cousa que se
não vê nem rende, e é tambem inutil e incomprehensivel. Eis ahi o mais a que as
idêas têm chegado. Creio que pouco mais ou nada mais têm feito do que isto.
Em Lisboa é que nem isto. Não sei
se tem havido quem tente introduzil-as nessa capital. V. ex.ª é que eu tenho a
certeza de que não era capaz d'essa má acção. Por isso Lisboa não cahe como
cahiram Athenas e Roma, por causa das suas idêas, e Jerusalem e outras cidades
infelizes, cujos poetas tiveram um amor demasiado ao ideal... Uma só cousa ficou
d'ellas: uma memoria grande, honrosa, nobilissima. Cahiram, mas deram ao mundo
um espectaculo raro, o espirito e a consciencia humana triumphando da matéria e
brilhando no meio das ruinas como a chamma que se alimenta da destruição da
lenha d'onde sahe e que a gerou. Eu não sei se v. ex.ª acha isto sensato e de
bom gosto. Cuido que não. O que eu sei sómente é que isto é sublime...
Paro aqui, ex.mo sr. Muito tinha
eu ainda que dizer: mas temo, no ardor do discurso, faltar ao respeito a v.
ex.ª, aos seus cabellos brancos. Cuido mesmo que já me escapou uma ou outra
phrase não tão reverente e tão lisongeira como eu desejára. Mas é que realmente
não sei como hei de dizer, sem parecer ensinar, certas cousas elementares a um
homem de sessenta annos; dizel-as eu com os meus vinte e cinco! V. ex.ª
aturou-me em tempo no seu collegio do Portico, tinha eu ainda dez annos, e
confesso que devo á sua muita paciencia o pouco francez que ainda hoje sei.
Lembra-se, pois, da minha docilidade e adivinha quanto eu desejaria agora
podel-o seguir humildemente nos seus preceitos e nos seus exemplos, em poesia e
philosophia como outr'ora em grammatica franceza, na comprehensão das verdades
eternas como em outro tempo no entendimento das fabulas de La Fontaine. Vejo,
porem, com desgosto que temos muitas vezes de renegar aos vinte e cinco annos
do culto das auctoridades dos dez; e que saber explicar bem Telemaco a crianças
não é precisamente quanto basta para dar o direito de ensinar a homens o que
sejam razão e gosto. Concluo d'aqui que a edade não a fazem os cabellos
brancos, mas a madureza das idêas, o tino e a seriedade: e, neste ponto, os meus
vinte e cinco annos têm-me as verduras de v. ex.ª convencido valerem pelo menos
os seus sessenta. Posso pois fallar sem desacato. Levanto-me quando os cabellos
brancos de v. ex.ª passam deante de mim. Mas o travesso cerebro que está
debaixo e as garridas e pequeninas cousas, que sahem d'elle, confesso não me
merecerem nem admiração nem respeito, nem ainda estima. A futilidade num velho
desgosta-me tanto como a gravidade numa criança. V. ex.ª precisa menos
cincoenta annos de edade, ou então mais cincoenta de reflexão.
É por estes motivos todos que
lamento do fundo d'alma não me poder confessar, como desejava, de v. ex.ª.»
Coimbra, 2 de Novembro de 1865
Nem admirador nem respeitador
Anthero
do Quental.
In
Antero de Quental, Bom-Senso e Bom-Gosto, Carta ao Exmo Sr. António Feliciano
Castilho, Inprenda da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1865, (livros de
Lavado, Lisboa; Livraria da Viuva Moré), Pedro Saborano, the Project Gutenberg
ebook, 2009, ISO 8859-15.
Cortesia
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