segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Quattrocento. Susana Fortes. «… recém-casados beijando-se na ponte Vecchio, motocicletas que iam saltando ruidosamente entre os pátios dos restaurantes, e centenas de jovens de pele escura que, ao entardecer, vendiam braceletes e relógios a 6 euros na Piazza della Reppublica…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Em 26 de Abril de 1478, quinto domingo depois da Páscoa, a história do Renascimento italiano, e provavelmente também a de toda a Europa, esteve a ponto de dar uma virada. O altar-mor da catedral de Florença acolhia naquela manhã a brilhante e turbulenta nobreza local, encabeçada pelo indiscutível homem forte da República, Lourenço de Médici, chamado o Magnífico. No momento culminante da missa, quando o padre elevava o cálice com o vinho consagrado, os conjurados tiraram as adagas que ocultavam sob suas capas e se atiraram sobre a família do mecenas. Esses factos, conhecidos como A conjuração dos Pazzi, marcaram durante gerações a memória dos florentinos por sua natureza violentamente escabrosa. A sua lembrança passou ao imaginário popular com o signo inconfundível das grandes convulsões colectivas, em meio a um imenso clamor de Dies Irae… Vários artistas ilustres do Renascimento, como Botticelli, Verrocchio e Leonardo da Vinci, registaram esses fatos em seus quadros carregados de recônditas referências simbólicas. Mas nenhum deles conseguiu se aproximar tanto da verdadeira índole do acontecido naquele domingo sangrento quanto o pintor Pierpaolo Masoni».

A Conspiração contra os Médicis
«Contar com um retrato falado do assassino é algo prioritário em qualquer investigação policial, mas se o crime foi cometido há cinco séculos, a coisa se complica. Uma pintura do Renascimento não pode ser considerada exactamente uma prova pericial. Mesmo assim, pode nos dizer muito sobre a vida e as circunstâncias que cercaram o artista. Não me refiro apenas às mensagens do quadro enquanto obra de arte, mas a uma outra dimensão da superfície pictórica, com as suas sucessivas camadas de pigmentos que contam a história de uma determinada obra do mesmo modo como os círculos no tronco da árvore nos falam de sua idade biológica. Às vezes a psicologia do pintor fica registada em cada pincelada, ao alisar ou esfumar, e por vezes até em forma de impressão digital. Segundo alguns cientistas, as pinturas poderiam encerrar o código do DNA do artista, presente microscopicamente em vestígios de saliva ou de sangue. Mas até o momento, e tendo em conta a precariedade de meios com que costuma trabalhar uma historiadora da arte, será melhor não contar com essa possibilidade. Cheguei a Florença com uma bolsa da Fundação Rucellai para escrever a minha tese de doutoramento sobre o pintor Pierpaolo Masoni, conhecido como o Lupetto, um dos artistas mais enigmáticos e promissores do Quattrocento, e que, por causa de um acidente, ficou cego em 1478, quando tinha apenas 33 anos. Felizmente, teve tempo de concluir algumas encomendas importantes para a família Médici, como a polémica Madonna de Nievole, e além disso deixou registo das suas reflexões numa série de manuscritos muito valiosos para qualquer amante da arte. No entanto, desde o primeiro momento em que comecei a imergir nesses textos, depositados numa prateleira do primeiro andar do Archivio di Stato de Florença, minhas obsessões foram-se tornando mais próprias de um detective do que de uma estudiosa do Renascimento.
No início da minha estada na cidade, senti uma profunda decepção. Florença me pareceu uma cidade abandonada à própria sorte, com as latas de lixo transbordando e uma balbúrdia de buzinas e sirenes que quebravam o reflexo de seu passado renascentista. Mas, pouco a pouco, fui-me acostumando àquela respiração de búfalo cansado. Aprendi a caminhar pelas ruas sem esbarrar nas hordas de turistas que invadiam a toda hora as estreitas calçadas do centro histórico. Dependendo do momento do dia, reinava um alarido humano de diferentes níveis: executivos que saíam de casa cedo com uma maleta de trabalho deixando no ar uma nuvem irrespirável de loção pós-barba, crianças a caminho da escola com seus gorros e cachecóis da Benetton, funcionários estatais, frades, japoneses que se retratavam sentados nos próprios joelhos do Holoferney de Donatello, recém-casados beijando-se na ponte Vecchio, motocicletas que iam saltando ruidosamente entre os pátios dos restaurantes, e centenas de jovens de pele escura que, ao entardecer, vendiam braceletes e relógios a 6 euros na Piazza della Reppublica, batendo os pés no calçamento de pedra para espantar o frio. Gente de passagem. Entre aquelas manadas de transeuntes que toda manhã tomavam as ruas de assalto, eu era mais uma. Uma transeunte bastante desorientada, isso sim, com uma bolsa da Fundação Rucellai em meu poder, um contrato de aluguer para seis meses que a reitoria da Universidade de Santiago de Compostela havia conseguido para mim, uma mala cheia de livros e alguns assuntos pessoais que precisava esquecer. A camuflagem é a primeira táctica de sobrevivência que alguém deve aprender para se adaptar a qualquer mundo cujo código desconhece. Mas, quando a sensação de estranheza ficava muito insuportável, eu tinha um recurso infalível para transformar a realidade de acordo com o meu desejo. Enquanto esperava no ponto do 22 para me dirigir ao Archivio ou enquanto tomava um cappuccino no Café Rivoire, na Piazza della Signoria, me punha a olhar pela janela e, sem me esforçar muito, em questão de segundos, o passado irrompia e o fervedouro da Florença do século XV se abria diante de mim. Pela minha cabeça iam desfilando cortesãos e capelães, notários, barbeiros, entalhadores e mercadores, como se eu me encontrasse na filmagem de uma produção de época». In Susana Fortes, Quattrocento, tradução de Maria Alzira Lemos, Pontas Literary, 2007, Planeta, Edições ASA, 2009, ISBN 978-989-230-488-5.

Cortesia de PLiterary/Planeta/Asa/JDACT