sexta-feira, 6 de novembro de 2015

A Arqueologia do Saber. Michel Foucault. «Da mobilidade política às lentidões próprias da ‘civilização material’, os níveis de análises multiplicaram-se: cada um tem suas rupturas específicas, cada um permite um corte que só a ele pertence»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Há dezenas de anos que a atenção dos historiadores se voltou, de preferência, para longos períodos, como se, sob as peripécias políticas e seus episódios, eles se dispusessem a revelar os equilíbrios estáveis e difíceis de serem rompidos, os processos irreversíveis, as regulações constantes, os fenómenos tendenciais que culminam e se invertem após continuidades seculares, os movimentos de acumulação e as saturações lentas, as grandes bases imóveis e mudas que o emaranhado das narrativas tradicionais recobrira com toda uma densa camada de acontecimentos. Para conduzir essa análise, os historiadores dispõem de instrumentos que criaram ou receberam: modelos de crescimento económico, análise quantitativa dos fluxos de trocas, perfis dos desenvolvimentos e das regressões demográficas, estudo do clima e de suas oscilações, identificação das constantes sociológicas, descrição dos ajustamentos técnicos, de sua difusão e persistência.
Estes instrumentos permitiram-lhes distinguir, no campo da história, camadas sedimentares diversas: as sucessões lineares, que até então tinham sido o objecto da pesquisa, foram substituídas por um jogo de interrupções em profundidade. Da mobilidade política às lentidões próprias da civilização material, os níveis de análises se multiplicaram: cada um tem suas rupturas específicas, cada um permite um corte que só a ele pertence: e, à medida que se desce para bases mais profundas, as escansões se tornam cada vez maiores. Por trás da história desordenada dos governos, das guerras e da fome, desenham-se histórias, quase imóveis ao olhar, histórias com um suave declive: história dos caminhos marítimos, história do trigo ou das minas de ouro, história da seca e da irrigação, história da rotação das culturas, história do equilíbrio obtido pela espécie humana entre a fome e a proliferação. As velhas questões de análise tradicional (que ligação estabelecer entre acontecimentos díspares? Como estabelecer entre eles uma sequência necessária? Que continuidade os atravessa ou que significação de conjunto acabamos por formar? Pode-se definir uma totalidade ou é preciso limitar-se a reconstituir encadeamentos?) são substituídas, de agora em diante, por interrogações de outro tipo: Que estratos é preciso isolar uns dos outros? Que tipos de séries instaurar? Que critérios de periodização adotar para cada uma delas? Que sistema de relações (hierarquia, dominância, escalonamento, determinação unívoca, causalidade circular) pode ser descrito entre uma e outra? Que séries de séries podem ser estabelecidas? E em que quadro, de cronologia ampla, podem ser determinadas sequências distintas de acontecimentos? Ora, mais ou menos na mesma época, nessas disciplinas chamadas histórias das ideias, das ciências, da filosofia, do pensamento e da literatura (a especificidade de cada uma pode ser negligenciada por um instante), nessas disciplinas que, apesar de seu título, escapam, em grande parte, ao trabalho do historiador e a seus métodos, a atenção se deslocou, ao contrário, das vastas unidades descritas como épocas ou séculos para fenómenos de ruptura. Sob as grandes continuidades do pensamento, sob as manifestações maciças e homogéneas de um espírito ou de uma mentalidade colectiva, sob o devir obstinado de uma ciência que luta apaixonadamente por existir e por se aperfeiçoar desde seu começo, sob a persistência de um género, de uma forma, de uma disciplina, de uma actividade teórica, procura-se agora detectar a incidência das interrupções, cuja posição e natureza são, aliás, bastante diversas. Actos e liminares epistemológicos descritos por G. Bachelard: suspendem o acúmulo indefinido dos conhecimentos, quebram a sua lenta maturação e os introduzem em um tempo novo, os afastam de sua origem empírica e de suas motivações iniciais, e os purificam de suas cumplicidades imaginárias; prescrevem, desta forma, para a análise histórica, não mais a pesquisa dos começos silenciosos, não mais a regressão sem fim em direcção aos primeiros precursores, mas a identificação de um novo tipo de racionalidade e de seus efeitos múltiplos. Deslocamentos e transformações dos conceitos: as análises de G. Canguilhem podem servir de modelo, pois mostram que a história de um conceito não é, de forma alguma, a de seu refinamento progressivo, de sua racionalidade continuamente crescente, de seu gradiente de abstracção, mas a de seus diversos campos de constituição e de validade, a de suas regras sucessivas de uso, a dos meios teóricos múltiplos em que foi realizada e concluída a sua elaboração». In Michel Foucault, A Arqueologia do Saber, 1969, tradução Luiz Neves, Editora Forense Universitária, Rio de Janeiro, 2008, ISBN 978-852-480-344-7.

Cortesia de FUniversitária/JDACT