sábado, 28 de novembro de 2015

Espelhos. Cartas e Guias Casamento. Espiritualidade na Península Ibérica. 1450-1700. Maria de Lurdes C. Fernandes. «… não apenas na linha desses aspectos fulcrais, mas em outros que tiveram desenvolvimentos posteriores e determinaram mesmo muitas das perspectivas sobre o casamento durante os séculos XVI e XVII»

Cortesia de wikipedia e jdact

Virgindade e casamento. Status religiosorum e status laicorum nos fins da Idade Média e primeira metade do século XVI
«(…) As frequentes reprovações e críticas, ainda durante o Outono da Idade Média, ao casamento e à vida matrimonial, olhados quase sempre do ponto de vista do modelo monástico de perfeição espiritual, logo, enquanto estados de vida não perfeitos, nos quais a aspiração à vida espiritual e à salvação da alma era olhada, por alguns, de um modo muito céptico, deverão ser compreendidas num contexto mais vasto de polémicas variadas, tanto de ordem religiosa ou literária, como de confronto de grupos sociais, em particular da aristocracia e do clero. Por outro lado, sendo tão frequentes quão pouco correctas algumas generalizações sobre o celibato e a condenação, num sentido vago, do casamento, convirá ter em conta, senão mesmo realçar, muitos matizes e perspectivas diferenciadas que, por toda a Europa cristã e, naturalmente, na Península Ibérica, se apresentam fundamentais para uma aproximação mais cautelosa ao problema, especialmente se se atender à origem social ou à proveniência cultural dessas críticas. Naturalmente, e antes de mais, não se poderão perder de vista tanto a importância e as repercussões, a diferentes níveis, da formação da doutrina clássica do casamento nos séculos XII e XIII como a momentânea ou demorada predominância doutrinária de um ou outro padre da Igreja, e, dentro desta, de uma ou outra obra, de um ou outro teólogo ou doutor, bem como a maior ou menor circulação dos textos, e qual o seu género literário, uma vez que poderão, todos ou cada um deles, determinar a focalização adoptada. Mesmo sem esquecer a omnipresença, por demais conhecida, da visão e dos conselhos paulinos em matéria matrimonial ao longo dos séculos e nos mais variados autores, lembremos a influência duradoira, cujos traços principais permanecerão, como veremos, em muitos textos até ao século XVII, de S. Jerónimo em relação à condição dos casados e, consequentemente, ao casamento, às suas cargas e, em especial, às segundas núpcias, bem como, por outro lado e numa perspectiva ligeiramente diferente deste, a de Santo Agostinho em relação aos problemas sexuais e aos fins do casamento. Mas, apesar da manifesta superioridade de ocorrências textuais destes padres, sobretudo na sua qualidade de autoridades, em muitos textos de finais da Idade Média, outros teólogos e doutores exerceram uma influência mais ou menos constante, não apenas na linha desses aspectos fulcrais, mas em outros que tiveram desenvolvimentos posteriores e determinaram mesmo muitas das perspectivas sobre o casamento durante os séculos XVI e XVII.
Assim se continuaram a ser evocadas autoridades tão díspares como Clemente Alexandria e Orígenes, Tertuliano, S. Cipriano e S. Ambrósio, que haviam expressado interpretações várias e, principalmente, exigentes do texto bíblico em relação ao casamento, a estes recorreu S. Jerónimo em apoio da sua defesa da superioridade da virgindade, também são visíveis as influências de S. João Crisóstomo e, muito mais tarde, de Santo Anselmo, S. Bernardo e S. Boaventura, que, com frequência, se mostrariam determinantes numa visão mais favorável do casamento, especialmente pelos matizes da interpretação e da orientação da doutrina e da moral matrimoniais. Mas não esqueçamos, por outro lado, o peso canónico duradoiro, sobretudo a partir da época carolíngia, de diversos teólogos e, em particular, de canonistas, entre eles Richard Worms e seus comentadores, Pedro Lombardo e Graciano, bem como de S. Tomás de Aquino, que, privilegiando a dimensão canónica da instituição matrimonial, contribuíram decisivamente não só para a formação da doutrina clássica do casamento cristão, mas também para as futuras orientações da moral conjugal (nomeadamente no plano sexual) e das imagens do casamento cristão. Obviamente, não podemos esquecer que muitos destes autores se basearam grandemente não só na matriz neo-testamentária, especialmente nas epístolas paulinas, mas também em muitos dos pontos de vista de autores clássicos gregos e latinos que, em muitos casos, os influenciaram definitivamente». In Maria de Lurdes Correia Fernandes, Espelhos, Cartas e Guias Casamento. Espiritualidade na Península Ibérica 1450-1700, Instituto de Cultura Portuguesa, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1995, Porto, ISBN: 972-9350-17-5.

Cortesia de ICP/FLFP/JDACT