quinta-feira, 19 de novembro de 2015

As Cidades Invisíveis. Italo Calvino. «Os olhos não vêem coisas mas sim figuras de coisas que significam outras coisas: a tenaz indica a casa do arranca-dentes, a garrafa a taverna, a alabarda o corpo da guarda, a balança romana a ervanária»

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As cidades e o desejo. 2
«(…) A cidade aparece-nos como um todo em que nenhum desejo se perde e de que nós fazemos parte, e como ela goza tudo de que nós não gozamos, só nos resta habitar este desejo e satisfazer-nos com ele. Este poder, que consideram ora maligno ora benigno, tem-no Anastásia, cidade enganadora: se durante oito horas por dia trabalharmos como entalhadores de ágatas ónixes crisoprásios, a nossa fadiga que dá forma ao desejo toma do desejo a sua forma, e julgamos gozar por toda Anastásia enquanto afinal não passamos de seus escravos.

As cidades e os sinais. 1
O homem caminha durante dias pelo meio de árvores e pedras. Raramente o olho se detém sobre alguma coisa, e só quando a reconhece pelo sinal de outra coisa: uma pegada na areia indica a passagem do tigre, um pântano anuncia um veio de água, a flor do hibisco o fim do Inverno. Tudo o resto é mudo e intercambiável; árvores e pedras são só o que são. Finalmente a viagem conduz à cidade de Tamara. Entra-se nela por ruas pejadas de letreiros que sobressaem das paredes. Os olhos não vêem coisas mas sim figuras de coisas que significam outras coisas: a tenaz indica a casa do arranca-dentes, a garrafa a taverna, a alabarda o corpo da guarda, a balança romana a ervanária. Estátuas e escudos representam leões golfinhos torres estrelas: sinal de que qualquer coisa, sabe-se lá o quê, tem por símbolo um leão ou golfinho ou torre ou estrela. Outros sinais avisam do que num local é proibido, entrar no beco com as carroças, urinar atrás do quiosque, pescar com cana do alto da ponte, e do que é lícito, dar de beber às zebras, jogar à bola, queimar os cadáveres dos parentes. Da porta dos templos vêem-se as estátuas dos deuses, representados cada um com os seus atributos: a cornucópia, a clépsidra, a medusa, pelo que o fiel pode reconhecê-los e dirigir-lhes as orações certas. Se um edifício não tiver nenhum letreiro ou figura, a sua própria forma e o lugar que ocupa na ordem da cidade bastam para indicar a sua função: o palácio real, a prisão, a fundição da moeda, a escola de aritmética, o bordel. Até as mercadorias que os vendedores põem em exposição nas bancas valem não por si próprias mas como sinais de outras coisas: a fita bordada para a fronte quer dizer elegância, a liteira dourada poder, os volumes de Averróis sapiência, a pulseira para o tornozelo volúpia. O olhar percorre as ruas como páginas escritas: a cidade diz tudo o que devemos pensar, faz-nos repetir o seu discurso, e enquanto julgamos visitar Tamara limitamo-nos a registar os nomes com que ela se define a si mesma e todas as suas partes. Como realmente é a cidade sob este denso invólucro de sinais, o que ela contém ou oculta, o homem sai de Tamara sem tê-lo sabido. Fora dela espraia-se a terra vazia até ao horizonte, abre-se o céu por onde correm as nuvens. Na forma que o acaso e o vento dão às nuvens o homem fica logo absorvido a reconhecer figuras: um veleiro, uma mão, um elefante...

As cidades e a memoria. 4
Depois de se passar seis rios e três cadeias de montanhas surge Zota, cidade que quem a viu uma vez nunca mais pode esquecer. Mas não por ela deixar como outras cidades memoráveis uma imagem fora do comum nas recordações. Zota tem a propriedade de ficar na memória ponto por ponto, na sucessão das ruas, e das casas ao longo das ruas, e das portas e das janelas das casas, embora não apresentando nelas belezas ou raridades particulares. O seu segredo é o modo como a vista percorre figuras que se sucedem como numa partitura musical em que não se pode mudar ou deslocar nenhuma nota. O homem que sabe de cor como é Zora, nas noites em que não consegue dormir imagina que anda pelas suas ruas e recorda a ordem em que se sucedem o relógio de cobre, o toldo às riscas do barbeiro, o repuxo dos nove esguichos, a torre de vidro do astrónomo, o quiosque do vendedor de melancias, a estátua do eremita e do leão, o banho turco, o café da esquina, a travessa que dá para o porto. Esta cidade que nunca se apaga da mente é como uma armação ou um reticulado em cujas casas cada um pode dispor as coisas que lhe aprouver recordar: nomes de homens ilustres, virtudes, números, classificações vegetais e minerais, datas de batalhas, constelações, partes de um discurso. Entre todas as noções e todos os pontos do itinerário poderá estabelecer um nexo de afinidades ou de contrastes que sirva de mnemónica, de referência instantânea para a sua memória. E assim e de maneira tal que os homens mais sábios do mundo são os que conhecem Zon de cor. Mas foi inutilmente que parti em viagem para visitar a cidade: obrigada a permanecer imóvel e igual a si própria para melhor ser recordada, Zora estagnou, desfez-se e desapareceu. A Terra esqueceu-a». In Italo Calvino, As Cidades Invisíveis, 1990, Editorial Teorema, Lisboa, 2003, ISBN 972-695-374-X.

Cortesia de ETeorema/JDACT