Sobre
o prazer de contar histórias
Na
Epifania
«(…) Maldito seja o dia em que a Cúria
resolveu restaurar a Capela Sixtina segundo as mais recentes descobertas científicas.
Maldito seja o florentino, maldita toda e qualquer arte (?), maldita a audácia
de não proferir pensamentos heréticos com a coragem dos hereges, mas de os confiar
à cal moída, à mais ignóbil de todas as pedras, buon fesco misturado com cores lascivas. O cardeal Joseph Jellinek ergueu
o olhar para a abóbada alta, onde estavam pendurados uns andaimes tapados com lonas.
Os andaimes deixavam ainda entrever a figura de Adão a ser apontada pelo dedo do
Criador. Como se o cardeal temesse a potente mão direita de Deus, o seu rosto foi
alterado por um tremor absolutamente perceptível que se repetiu mais umas
tantas vezes a intervalos irregulares; pois lá em cima, envolto em trajes
vermelhos, não pairava um Deus bondoso, mas um Criador forte e belo, com um
corpo musculado como o de um lutador, um Criador que emanava vida. Ali mesmo, o
verbo tinha-se tornado carne. Desde os funestos tempos do pontífice Júlio II e do
seu gosto pela arte, nenhum papa se deleitara com as pinturas orgíacas de Miguel
Ângelo Buonarroti, que tinha uma postura um tanto ou quanto incrédula perante a
fé cristã, o que, aliás, já no seu tempo era um segredo partilhado por todos. Buonarroti
compunha as imagens que a fantasia lhe ditava numa estranha mistura de tradições
fundamentadas no Antigo Testamento e outras que remontavam à Grécia Antiga, ou porventura
também a um passado romano idealizado, o que, na altura, era visto simplesmente
como pecado. Segundo consta, o papa Júlio II ajoelhou-se no chão e começou a rezar
quando o artista lhe mostrou pela primeira vez o fresco com o cruel juiz que deixa
a tremer bons e maus com a força da sua sentença. Ainda mal recuperado da sua humildade,
começou uma violenta discussão com Buonarroti sobre a estranheza, o mistério e a
nudez da representação. A Cúria, por seu turno, sentiu-se desconcertada pelo simbolismo
intangível, pelas inúmeras alusões e insinuações neoplatónicas, não encontrando
outra solução senão censurar esta aglomeração de corpos humanos nus e, pior ainda,
exigir que fosse retirada. Além do mais, à frente da Cúria estava Biagio Cesena,
o mestre-de-cerimónias do próprio papa, que acreditava reconhecer-se em Minos, o
juiz dos infernos. Somente o veto indignado dos mais importantes artistas de Roma
acabou por salvar O Juízo Final
da demolição.
Infiltrações,
várias camadas de pintura sobrepostas e a fuligem das velas ameaçavam destruir o
golpe de génio orgíaco de Miguel Ângelo. Oh, se pelo menos o bolor tivesse comido
os profetas e o fumo tivesse consumido as sibilas; pois, mal o restaurador-chefe
Bruno Fedrizzi começara o seu trabalho, empoleirado nos andaimes, mal ele libertara,
com a ajuda dos assistentes, os primeiros profetas de uma camada escura, composta
por carbono, cola de coelho e pigmentos diluídos em óleo, o legado do florentino
iniciou o seu curso, pareceu até que Miguel Ângelo ressuscitava de entre os mortos,
ameaçador como o anjo da vingança. Outrora, Joel, o profeta, segurava nas mãos um
rolo obscuro de pergaminho que, apesar de estar revirado para trás entre a mão esquerda
e a direita, não tinha qualquer símbolo escrito, nem na parte da frente, nem no
verso. Agora, depois de feita a limpeza, reconhecia-se claramente um A no pergaminho. O A e o O, a primeira e última
letras do alfabeto grego, são símbolos cristãos da Igreja primitiva, mas os restauradores esfregaram em vão, até que o
pergaminho pintado al fresco (pintado
sobre o estuque ainda húmido) reluziu num branco brilhante. A cal não escondia nenhum
O. Em contrapartida, no livro que a sibila
eritreia, que se encontra ao lado do profeta Joel, segura sobre um púlpito, apareceu
mais uma enigmática abreviatura: I F A.
Esta inesperada aparição levou a uma violenta discussão, sem que, no entanto, o
público em geral tomasse conhecimento do acto. Arquivistas e historiadores de
arte da Direcção-Geral dos Edifícios e Museus do Vaticano deram um parecer
sobre a descoberta; sob a tutela do catedrático Antonio Pavanetto, de Florença,
veio o perito em Miguel Ângelo Riccardo Parenti; e, depois de o significado das
letras A I F A ter sido discutido internamente,
o cardeal Secretário de Estado Cascone declarou a descoberta como assunto
secreto. Foi também Parenti quem comentou pela primeira vez a possibilidade de se
poderem vir a descobrir novos símbolos no decurso dos trabalhos de restauro; símbolos
esses cuja decifração, em princípio, poderia ser pouco favorável à Cúria e à Igreja.
Afinal, Miguel Ângelo sofrera com os seus clientes, mais precisamente com os papas,
tendo declarado mais do que uma vez que se haveria de vingar deles à sua maneira.
O cardeal Secretário de Estado perguntou então se seria de esperar que o pintor
florentino tivesse representado pensamentos heréticos, ao que o professor catedrático
respondeu afirmativamente, mas com algumas reservas». In Philippe Vandenberg, A
Conspiração Sixtina, 1991, tradução de Ruth Correia, Quidnovi, Matosinhos,
2006, ISBN 978-989-628-060-4.
Cortesia
de Quidnovi/JDACT