«(…) Outro sinal de crise,
bem mais grave, é a falta de ideias. Estou à espera, como dizia a Teresinha, de
que uma ideia me tombe no regaço e essa espera não é nada confortável, porque comporta
sempre o receio de que nada venha aterrar, de que o regaço fique estéril. Se bem
que este incómodo telefonema do Filinto tenha agitado uma fibra qualquer. Ainda
não sei o quê, exactamente. Vejamos, um telefonema: tinha piada usar um
telefone como ponto de partida. Um homem sentiu-se (como eu o compreendo!) desfasado
em relação ao mundo. O mundo, com a sua globalização e o acréscimo de escravatura
camuflada trazido por essa nova forma de ditadura, mais a grosseria dos media, a desumanização, enfim: tudo aquilo
que é o patamar e a sala de visitas do século XXI, o mundo, dizia eu, desgostou-o
de tal forma que ele aplicou todas as suas energias para tornar possível,
económica e fisicamente possível, uma retirada estratégica. Quando reuniu os meios
necessários, escolheu um pardieiro arruinado, isolado, longe de tudo, aninhado no
alto de uma rude colina; comprou-o, restaurou-o, dotou-o de todo o conforto que
considerou ser-1he agradável e depois suspendeu, e, mais tarde cortou, os seus
contactos com esse mundo que o desgostara.
Nem rádio, nem televisão,
nem computador ligado à Internet, nem,
sequer, estrada transitável para automóveis. As provisões acumuladas asseguravam-lhe
três anos de isolamento absoluto, depois logo se veria. Uma única via de comunicação
lhe restava, o telefone. Apenas na perspectiva do final desse período de três
anos, para poder encomendar mais víveres. Cortadas as pontes, o homem mergulhou
na solidão e em si próprio. Com prazer? Com volúpia? Com íntimo desgosto? Ninguém
o poderia dizer, talvez nem ele próprio. Sabia, em todo o caso, que aquele passo
radical não fora dado em busca do prazer, mas simplesmente para fugir à loucura
que o rondava de perto. E o tempo passou, silencioso, na imobilidade aparente das
coisas mais rápidas. O homem não se aborreceu no seu exílio. Levara consigo centenas,
talvez um milhar de livros de todos os tipos e sobre todos os assuntos. As suas
horas foram consumidas em leitura e nas reflexões que a leitura punha em marcha.
No final do primeiro ano assim vivido, o homem descobriu em si uma
pulsão inquietante, a de pegar no seu telefone e ligar para um número qualquer.
Ter-se-ia curado da repugnância que sentia pelo mundo? A esta pergunta, respondeu,
após introspecção cuidadosa: não, ele continuava a sentir náuseas só com a
simples ideia de avistar um seu semelhante. O desejo de usar o telefone, isto é,
de comunicar com um qualquer ser humano um mero reflexo do instinto gregário comum
a toda a espécie, porém nada tinha a ver com a sua personalidade, enquanto
indivíduo. No entanto, esse reflexo mostrou-se suficientemente forte para lhe roubar
a tranquilidade. Começou a estragar-lhe as noites e a envenenar-lhe os dias.
Então, o homem decidiu iludi-lo. Considerou a possibilidade de telefonar para o
serviço horário, pois não correria qualquer risco de contacto, ouviria uma simples
gravação. Contudo, uma gravação já seria de mais, reflectiu. A gravação continha
uma voz e essa voz seria humana. Além disso, a gravação era o resultado visível
de toda uma tecnologia que ele aprendera a detestar. Foi então que concebeu a solução
mais adequada, pensou ele, talvez já afectado pela solidão voluntária. Do que
eu sinto vontade, raciocinou, é de executar o simples acto de pegar no telefone
e marcar um número; pois bem, é simples, telefonar-me-ei a mim próprio, ligarei
pera o meu próprio número. Ouvirei o sinal de ocupado e poderei desligar em paz». In João Aguiar, A Catedral Verde,
(A Crónica de Santo Adriano), 2000, ASA Editores, Porto, 2006, ISBN
972-41-2412-6.
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