segunda-feira, 9 de novembro de 2015

A Catedral Verde. João Aguiar. «Outro sinal de crise, bem mais grave, é a falta de ideias. Estou à espera, como dizia a ‘dita’, de que uma ideia me tombe no regaço e essa espera não é nada confortável, porque comporta sempre o receio…»

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«(…) Abro a janela da sala grande, embora a manhã esteja fria. Ao entrar, senti o ar pesado e um vago cheiro a humidade, o que não é de espantar porque em Vale de Monges também deve ter chovido toda a noite e, de resto, continua a chover. Daqui a minutos terei de fechar as vidraças e tratar de aquecer a casa, mas de momento prefiro ficar debruçado sobre o parapeito, apesar da chuva e do vento. Aqui, ao menos, posso debruçar-me porque o mal-estar provocado pelas alturas não me afecta, evidentemente, num rés-do-chão, ainda que elevado. Agora que estou de novo em casa, aquilo a que dou atenção em primeiro lugar é ao silêncio, que em Vale de Monges pode pesar-me às vezes (raras vezes), mas nunca me esmaga. Julgo que se fosse mais novo, se os momentos em que sonho não tivessem já de ser roubados àquele rapazinho que imaginava heróis a cavalgar em pradarias e florestas, este silêncio seria cheio de murmúrios e de promessas. Ainda assim, tal como ele é hoje, quase nunca me é hostil. Em dias como este, quando trago na cabeça o ressoar brutal do trânsito de Lisboa, ele é, claramente, uma bênção.
Adriano, meu filho, menos teatro, por favor. Ou menos efeitos literários. Parti de Lisboa muito cedo, justamente para evitar a chamada hora de ponta (isto soa-me sempre a alusão porno: hora de ponta, hora da ponta..., enfim). Quando saí do apartamento o João Carlos ainda estava metido no quarto, suponho que a dormir. Ontem, avisei-o de que se acordasse bem cedo partiria imediatamente. O serão decorreu sem sobressaltos, isto é: evitámos com todo o cuidado falar de divórcios e de crises existenciais e eu abstive-me sobretudo de mencionar o nome da sua ex-mulher porque no fundo de todos os seus problemas subsiste o facto simples e surpreendente de ele ainda gostar dela. Portanto, não falámos do que nos preocupava. Era essa a ideia, afinal, readormecer os tigres que se mexiam e ameaçavam acordar.
Nesse aspecto o serão foi um êxito, embora eu me pergunte se a única solução que nos resta a ambos é a de embalar tigres. Talvez seja, afinal. É a mais natural e a mais lógica e por isso mesmo não me agrada, não tenho culpa de ter nascido complicado. Parece-me que equivale a tomar drogas. Não tão fulminantes para o físico, não tão chatas para aqueles que nos estão próximos e têm de nos aturar; mais civilizadas, por conseguinte. Porém, no final do processo, o resultado há-de ser, pelo menos, comparável. E depois, todo este andar à volta de mim próprio é, além de neurótico, estéril. E torna mais viva a inquietação de sentir o tempo a escorregar. Por isso há que encontrar uma ocupação útil, como, por exemplo, fechar a janela e decidir se vou acender a lareira ou ligar os aquecedores. Logo nesta altura, em que encontro um rumo nobre para os próximos minutos da minha vida, o telefone começa a tocar. O som irrita-me por ser tão brusco e mais ainda porque não esperava nem desejava uma chamada esta manhã.
Quando vou atender a irritação cresce, porém contenho-a. É o Carlos Filinto, meu superficial amigo e vizinho. Sinto-me obrigado a conter a irritação porque sou o responsável pelo incómodo. Dei-lhe o número do meu telefone. Ele recorda-me uma promessa imprudente que fiz há tempos e pede com insistência que nos encontremos ainda antes do almoço. Não encontro desculpa adequada apesar de a procurar. Talvez porque me apanhou desprevenido e também porque, com toda a honestidade, não me sinto em condições de lucidez suficientes para arranjar uma desculpa desonesta. Resigno-me e digo-lhe até já. De qualquer modo, teria de ir à aldeia para almoçar porque também não me sinto em condições de fazer manipulações na cozinha. Em condições, em condições..., o que quero eu dizer com isto? Será pretexto, será o encobrimento de uma inenarrável preguiça? Suspeito que sim. Mas a preguiça, no meu caso, é, justamente, um sinal de crise». In João Aguiar, A Catedral Verde, (A Crónica de Santo Adriano), 2000, ASA Editores, Porto, 2006, ISBN 972-41-2412-6.

Cortesia de ASA/JDACT