«(…) Abro a janela da sala
grande, embora a manhã esteja fria. Ao entrar, senti o ar pesado e um vago cheiro
a humidade, o que não é de espantar porque em Vale de Monges também deve ter chovido
toda a noite e, de resto, continua a chover. Daqui a minutos terei de fechar as
vidraças e tratar de aquecer a casa, mas de momento prefiro ficar debruçado
sobre o parapeito, apesar da chuva e do vento. Aqui, ao menos, posso debruçar-me
porque o mal-estar provocado pelas alturas não me afecta, evidentemente, num rés-do-chão,
ainda que elevado. Agora que estou de novo em casa, aquilo a que dou atenção em
primeiro lugar é ao silêncio, que em Vale de Monges pode pesar-me às vezes
(raras vezes), mas nunca me esmaga. Julgo que se fosse mais novo, se os momentos
em que sonho não tivessem já de ser roubados àquele rapazinho que imaginava heróis
a cavalgar em pradarias e florestas, este silêncio seria cheio de murmúrios e de
promessas. Ainda assim, tal como ele é hoje, quase nunca me é hostil. Em dias como
este, quando trago na cabeça o ressoar brutal do trânsito de Lisboa, ele é, claramente,
uma bênção.
Adriano, meu filho, menos
teatro, por favor. Ou menos efeitos literários. Parti de Lisboa muito cedo, justamente
para evitar a chamada hora de ponta (isto
soa-me sempre a alusão porno: hora de ponta, hora da ponta..., enfim).
Quando saí do apartamento o João Carlos ainda estava metido no quarto, suponho
que a dormir. Ontem, avisei-o de que se acordasse bem cedo partiria imediatamente.
O serão decorreu sem sobressaltos, isto é: evitámos com todo o cuidado falar de
divórcios e de crises existenciais e eu abstive-me sobretudo de mencionar o nome
da sua ex-mulher porque no fundo de todos os seus problemas subsiste o facto simples
e surpreendente de ele ainda gostar dela. Portanto, não falámos do que nos preocupava.
Era essa a ideia, afinal, readormecer os tigres que se mexiam e ameaçavam
acordar.
Nesse aspecto o serão foi
um êxito, embora eu me pergunte se a única solução que nos resta a ambos é a de
embalar tigres. Talvez seja, afinal. É a mais natural e a mais lógica e por isso
mesmo não me agrada, não tenho culpa de ter nascido complicado. Parece-me que
equivale a tomar drogas. Não tão fulminantes para o físico, não tão chatas para
aqueles que nos estão próximos e têm de nos aturar; mais civilizadas, por conseguinte.
Porém, no final do processo, o resultado há-de ser, pelo menos, comparável. E depois,
todo este andar à volta de mim próprio é, além de neurótico, estéril. E torna mais
viva a inquietação de sentir o tempo a escorregar. Por isso há que encontrar
uma ocupação útil, como, por exemplo, fechar a janela e decidir se vou acender a
lareira ou ligar os aquecedores. Logo nesta altura, em que encontro um rumo nobre
para os próximos minutos da minha vida, o telefone começa a tocar. O som irrita-me
por ser tão brusco e mais ainda porque não esperava nem desejava uma chamada esta
manhã.
Quando vou atender a irritação cresce, porém contenho-a. É o Carlos Filinto,
meu superficial amigo e vizinho. Sinto-me obrigado a conter a irritação porque
sou o responsável pelo incómodo. Dei-lhe o número do meu telefone. Ele recorda-me
uma promessa imprudente que fiz há tempos e pede com insistência que nos
encontremos ainda antes do almoço. Não encontro desculpa adequada apesar de a procurar.
Talvez porque me apanhou desprevenido e também porque, com toda a honestidade, não
me sinto em condições de lucidez suficientes para arranjar uma desculpa desonesta.
Resigno-me e digo-lhe até já. De qualquer modo, teria de ir à aldeia para almoçar
porque também não me sinto em condições de fazer manipulações na cozinha. Em
condições, em condições..., o que quero eu dizer com isto? Será pretexto, será o
encobrimento de uma inenarrável preguiça? Suspeito que sim. Mas a preguiça, no meu
caso, é, justamente, um sinal de crise». In João Aguiar, A Catedral Verde, (A Crónica
de Santo Adriano), 2000, ASA Editores, Porto, 2006, ISBN 972-41-2412-6.
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