As
Montanhas Negras do Alto Languedoc. Verão de 1207
« Bridget
sabia que a mãe ia morrer. A dourada força de vida que devia irradiar continuamente
de dentro e em volta do seu corpo não passava de um pálido bruxulear, e os seus
ferimentos não reagiam à onda de energia curativa que saía das mãos de Bridget.
Fora da caverna na montanha em que se abrigavam, uma tempestade de Verão varria
todo o Alto Languedoc. Bridget sentia os relâmpagos dentro de si e via a sua luz
ofuscante através das pálpebras quentes e cansadas. Ela nascera durante uma tempestade
como aquela, e o poder dos relâmpagos estava nas suas veias. Era um sagrado dom
de vida, uma manifestação das forças da Primeira Luz. Mas nessa noite viera para
lhe levar a mãe. Não me abandones, sussurrou Bridget numa voz sufocada de lágrimas.
Por favor, não te vás; tenho tanto medo. Inclinou o rosto sobre a mão da mãe.
Os seus dedos estavam incrustados de sangue, apenas carne viva onde recentemente
se viam bem aparadas unhas cor-de-rosa. Os pulsos finos ostentavam gotejantes pulseiras
vermelhas no loca1 onde as grilhetas lhe tinham queimado a pele. Estas feridas teriam
sarado com o tempo, mas não a que havia sobre a testa de Magda, onde os padres tinham
gravado até ao osso com ferro quente a cruz que ela se recusara a beijar. Bruxa
e herética, tinham-lhe chamado, imunda meretriz do demónio. A sua pobre mãe,
que nunca fizera nem desejara mal a ninguém na sua vida. As pestanas da mãe
agitaram-se e ergueram-se. Tens muitos anos para viver, sussurrou, e um dever a
cumprir; tu és a última da minha linhagem. A sua garganta moveu-se quando ela se
esforçou por engolir. Bridget ajudou-a a beber de um pequeno copo de madeira que
enchera com água da nascente ao fundo da caverna.
Magda
bebeu, embora a maior parte do líquido lhe escorresse pelo queixo. Os seus olhos
cinzentos eram grandes e luminosos, toda a força de vida que lhe restava concentrada
naquele olhar. Tens de encontrar um consorte, quando a Lua estiver no tempo certo,
para semear o teu ventre. Esta é a maneira como sempre foi, desde que os grandes
círculos de pedra foram erguidos, antes de o espinho sagrado ser plantado. Mas
o tio Chretien..., começou Bridget a dizer, lançando um olhar involuntário por cima
do ombro na direcção da escura boca da caverna. O teu tio não se intrometerá no
teu caminho. Ele é um cátaro, e para os cátaros o celibato é necessário; mas ele
sabe que não será assim para ti. Bridget procurou o som de passos lá fora, mas apenas
ouviu o vento que assobiava por entre as definhadas árvores na encosta e as chibatadas
da chuva. O seu tio Chretien e o companheiro Matthias tinham ido procurar abrigo
para os cavalos. Não havia espaço na caverna, mas Matthias notara um abrigo de
cabras em ruínas mais abaixo na ladeira. Embora ficasse mais perto da aldeia,
não era provável que houvesse alguém fora de casa para os ver, com aquele tempo.
A fogueira
que ela acendera anteriormente começava a fenecer e a mão da mãe pousada na sua
estava gelada. Bridget pôs mais lenha sobre as brasas. Fechando os olhos, procurou
dentro de si e extraiu a sua força vital sobre a forma de um fio brilhante como
um relâmpago. As chamas surgiram por baixo da mão estendida que ela passou
sobre a fogueira, saltando como que de uma mola ao seu comando. As estranhas figuras
de animais pintadas nas paredes da caverna agitaram-se com uma ilusão de vida no
clarão de luz e contraste de sombra. Bridget sabia que, se mergulhasse mais fundo
no seu transe, veria pequenos homens de pele cor de azeitona a marcar as paredes
com paus enegrecidos ao lume, pintando imagens das suas presas para invocar o
sucesso na caçada. Ouviria os seus cânticos sagrados e provaria o sabor do fumo
da sua fogueira, a arder onde ardia agora a dela. Chama sobre chama, ela sentiu
a conexão antes de retirar a mão e se voltar novamente para a sua mãe.
É tão
difícil de suportar, disse ela suavemente, e ouviu a própria voz ecoar pelas paredes
com a nota desamparada de uma criança perdida. Magda estava mais imóvel do que as
pinturas. Embora os lábios da mãe não se movessem, as palavras entraram na mente
de Bridget com precisa claridade. O caminho da nossa linhagem nunca foi de outra
maneira. Sempre encontrarás pedras lançadas no teu caminho, mas, se as
desviares, encontrarás o amor e a coragem para continuar. Um tremendo raio de luz
fendeu a noite, soltando rochas na montanha e lançando-as a ribombar pela
encosta abaixo. Um trovão explodiu por cima delas e, enquanto os ecos se ouviam
em volta da caverna, Bridget sentiu o calor de um beijo na sua face e depois na
testa em terna bênção. Mãe! O angustiado grito de Bridget fundiu-se com a queda
do trovão e sobreviveu-lhe, mas Magda não respondeu. O seu corpo maltratado e exausto
estava inerte e sem vida: uma concha abandonada. Bridget chorou baixinho, e depois
abafou o som por detrás de lábios comprimidos. A sua mãe estava agora com a Primeira
Luz, estava livre de dores e perseguições. Só tinha razão para chorar
por si própria. Beijou o rosto ferido e cavado e removeu cuidadosamente um amuleto
de prata do pescoço da mãe, pendurando-o em volta do seu, onde tilintou suavemente
contra outro idêntico, - um desenho gravado de uma estrela de seis pontas dentro
da qual uma pomba se erguia de um cálice». In Elizabeth Chadwich, As Filhas do Graal, 1993,
tradução de Ester Cortegano, Edições Chá das Cinco, 2013, ISBN
978-989-710-050-5.
Cortesia
de CdasCinco/JDACT