Sátiras a Trovadores e Jograis
«(…) Quase sempre, o
valor pessoal acaba por vencer as diferenças de classe, ao menos em literatura,
apesar do serventês de Pero Mafaldo contra o talentoso jogral Pero Ambroa.
Contudo, os motivos alegados eram geralmente a incompetência:
Pero d’Ambroa, averedes
pesar
do que nós ora queremos
fazer:
os trobadores queremos
poer
que se non faça tanto
mal cantar,
nen ar chamemos, per nen
un amor
que lh’ajamos, nulh’ome
trobador
se non aquele que souber trobar.
Também Pedro Amigo
Sevilha põe em dúvida, ou finge pôr, o saber trovadoresco do jogral Lourenço e chama-lhe
teimoso, por não lhe aceitar os conselhos. Se o ouvissem cantar, muito se
ririam Pero Sen e Pero Bodin e quantos
cantadores son! O jogral, porém, ri-se de tais soberbias e afirma, em duas
tenções, ser inútil fazer chacota das suas trovas. Melhor do que Rodrigo Eanes,
sabe ele fazer um cantar de amor. Onde ele estiver, sempre os seus cantares
terão boa acolhida, mesmo no paço do rei ou do imperador. Quanto a Pero Garcia,
não diga mal da sua arte de trovar, tanto mais que vós ben non sabedes julgar com imparcialidade. Enfim, temos ainda a
refrega com Joan Vásquez. Perguntava-lhe este se fugira de Portugal por ter
matado alguém ou roubado. Não matei nem roubei, vim para cá, a fim de ganhar a
vida.
A crítica literária foi
sempre difícil nem pode traduzir-se com precisão matemática. Por isso João
Soárez Coelho não se conforma com o parecer de Pérez Vuitoron. Seja mas é juiz
das cantigas de maldizer que lhe fez. E muitas foram elas, à volta dumas nove. Vem
agora a talho de foice lembrar a escala hierárquica dos poetas dos
cancioneiros: em baixo, estava o
simples jogral; depois, vinha o segrel; e, no topo da classificação, dominava o
trovador. Por isso diz Afonso Eanes Coton a Pero Ponte: en nossa terra, se Deus me perdon, / a
todo escudeiro que pede don / as mais das gentes lhe chaman segrel. E o
outro responde que tal é o seu mester.
Abaixo do segrel, servia o jogral. E assim, Pero Ambroa, em disputa com Joan Baveca,
censura-o por não querer os meus cantares
dizer ant’alguen, divulgando outros de quem desconhecia o bem trovar em
coitas de amor. E censurava-o, apesar de não ser trovador, embora estando em situação superior, de segrel,
naturalmente, nota Rodrigues Lapa, mas sem rigidez, pois eram vocábulos
flexíveis.
Verbalmente, encaixavam
coisas duras, os jograis. Ao famoso jogral Lourenço, atira João Soárez Coelho
esta frechada venenosa: essas tuas tenções devem ser de João Guilhade, pois não
rimam bem, nem acertam nas sílabas. No mesmo sentido, temos uma cantiga de Gil Pérez
Conde, português na corte de Castela: Jogral!, diz ele, três coisas são
precisas para cantar agradavelmente: donaire, voz e saber.
Sem isto, nunca bon segrel / vimos en
Espanha nem alhures. Se isto não tendes, remédio não há. São coisas que
se não compram nem vendem. E se teimais em trovar, furtai as cantigas a outro.
Salta à vista, neste
caso, que segrel e jogral muitas vezes se confundiam, pois Gil Pérez Conde diz
ora jogral ora segrel, a propósito da mesma pessoa. E que função era a deles? A
de músicos ex-officio, diz C. M. Vasconcelos, executantes e propagadores
de versos alheios. Às vezes, compunham versos e cantares novos, em geral para o
povo e excepcionalmente para a corte, passando, neste caso, por cima das
barreiras sociais. Em termos de vida provinciana e algo caricatural, eram eles
que estendiam o boné, a pedir alguma coisa no final das cantigas. Aos jograis e
segréis davam os ouvintes alimentos ou dinheiro. E eles também faziam de escudeiros
ou criados, junto dos trovadores mais endinheirados, quando andavam juntos. Com
efeito, Joan Soárez Coelho, numa das suas cantigas, entrega dinheiro ao jogral,
para lhe arranjar peixe. Sumiu-se o jogral e Soárez Coelho, homem de posses,
teve de mandar outro.
Nas cantigas de escárnio
e maldizer, trovadores, segréis e jograis maldavam de tudo, e não poupavam os seus
confrades. Fernan Redondo, mais tarde mordomo-mor de Pedro de Aragão, queixa-se
de o rei ter querido agredi-lo com o espeto de assar leitões. Mau era o rei,
que lançou mão do espeto en son d’esgremir.
E o vassalo-senhor, que el-rei se gabava de ter, seria o seu cunhado el-rei
Dinis I. Ficção poética, exagero ou verdade histórica? Talvez ficção. Uma coisa
ficou: esta sátira graciosa da cólera do rei, por ocasião de ele cantar seus lais. Joan Soárez Coelho surge
novamente, desta vez com um descordo satírico dirigido a Martin Alvelo, também
ele trovador. O desgraçado (já naquele tempo!) pintava os cabelos
brancos e vestia-se garridamente, para agradar às mulheres:
Martin Alvelo,
desse teu cabelo
te falarei já:
cata capelo
que ponhas sobr’elo,
ca mui mester ch’á;
ca o topete
pois mete
cãos mais de sete,
e mais, u mais á,
muitos che vejo
sobejo:
e que grand’entejo
toda molher á.
Gracejavam uns dos outros e dão às vezes a impressão de se insultar, os
homens do mundo trovadoresco. Mas, como nos desacordos poéticos, digamos assim,
entre Bocage e J. Agostinho Macedo, temos de atender ao tom, ao sorriso e a mil
pormenores humanos que envolviam a letra. Quando Afonso Eanes Coton, numa
frechada ao seu colega Pero da Ponte, afirma que ele é feio e mal talhado,
sobretudo em trajes menores, está longe de lhe querer mal». In
Mário Martins, A Sátira na Literatura medieval Portuguesa (séculos XIII e XIV),
Biblioteca Breve, Série Literatura, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa,
Centro Virtual Camões, 1986.
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