sábado, 14 de novembro de 2015

O Declínio da Idade Média. Johan Huizinga. «A cidade moderna mal conhece o silêncio ou a escuridão na sua pureza; Tudo o que se apresentava ao espírito em contrastes violentos e em formas impressionantes emprestava à vida quotidiana um tom de excitação»

Cortesia de wikipedia e jdact

O Teor Violento da Vida
«Para o mundo, quando era quinhentos anos mais novo, os contornos de todas as coisas pareciam mais nitidamente traçados do que nos nossos dias. O contraste entre o sofrimento e a alegria, entre a adversidade e a felicidade, aparecia mais forte. Todas as experiências tinham ainda para os homens o carácter directo e absoluto do prazer e da dor na vida infantil. Qualquer conhecimento, qualquer acção, estavam ainda integrados em formas expressivas e solenes, que os elevavam à dignidade de um ritual. Porque não eram somente os grandes momentos do nascimento, casamento e morte que, pela santidade do sacramento, eram elevados ao nível dos mistérios; incidentes de importância menor, como uma viagem, um empreendimento, uma visita, eram igualmente rodeados por mil formalidades: bênçãos, cerimónias, fórmulas. As calamidades e a indigência eram mais aflitivas que presentemente; era mais difícil proteger-se contra elas e encontrar-lhes o alívio. A doença e a saúde apresentavam um contraste mais chocante; o frio e a escuridão do Inverno eram males mais reais. Honrarias e riquezas eram desejadas com mais avidez e contrastavam mais vividamente com a miséria que as rodeava. Nós, hoje em dia, dificilmente compreendemos a que ponto eram então apreciados um casaco de peles, uma boa lareira aberta, um leito macio ou um copo de vinho.
Então também todas as coisas na vida tinham uma orgulhosa ou cruel publicidade. Os leprosos faziam soar os seus guizos e passavam em procissões, os mendigos exibiam pelas igrejas as suas deformidades e misérias. Cada ordem ou dignidade, cada grau ou profissão, distinguia-se pelo trajo. Os grandes senhores nunca se deslocavam sem vistosa exibição de armas e escolta, excitando o temor e a inveja. Execuções e outros actos públicos de justiça, de falcoaria, casamentos ou enterros, eram anunciados por pregoeiros e procissões, cantigas e música. O amante usava as cores da sua dama; os companheiros, o emblema da sua fraternidade; os domésticos e servos, os emblemas ou brasões dos seus senhores. Entre a cidade e o campo o contraste era igualmente profundo. Uma cidade medieval não se perdia em extensos subúrbios, fábricas e casas de campo; cercada de muralhas, erguia-se como um todo compacto, eriçada de torres sem conta.
Por mais altas e ameaçadoras que fossem as casas dos nobres ou dos mercadores a massa imponente das igrejas sobressaía sempre no conjunto da cidade. O contraste entre o silêncio e o ruído, entre a luz e as trevas, do mesmo modo que entre o Verão e o Inverno, acentuava-se mais fortemente do que nos nossos dias. A cidade moderna mal conhece o silêncio ou a escuridão na sua pureza e o efeito de uma luz solitária ou de um grito isolado e distante. Tudo o que se apresentava ao espírito em contrastes violentos e em formas impressionantes emprestava à vida quotidiana um tom de excitação e tendia a produzir essa perpétua oscilação entre o desespero e a alegria descuidosa, entre a crueldade e a ternura, que caracterizaram a vida da Idade Média. Um som se erguia constantemente acima dos ruídos da vida activa e elevava todas as coisas a uma esfera de ordem e serenidade: o ressoar dos sinos.
Eles eram para a vida quotidiana os bons espíritos que, nas suas vozes familiares, ora anunciavam o luto, ora chamavam para a alegria; ora avisavam do perigo, ora convidavam à oração. Eram conhecidos pelos seus nomes: a grande Jacqueline, o sino de Rolando. Toda a gente sabia o significado dos diversos toques que, apesar de serem incessantes, não perdiam o seu efeito no espírito dos ouvintes. Durante o famoso duelo judicial entre dois burgueses de Valenciennes, em 1455, o grande sino que é horrível de ouvir, no dizer de Chastellain, nunca deixou de tocar. Que atordoamento não devia produzir o badalar dos sinos de todas as igrejas em todos os mosteiros de Paris ressoando desde manhã até ao anoitecer, e mesmo durante a noite, quando se concluía um tratado de paz ou era eleito um papa! As frequentes procissões eram também um contínuo motivo de piedosa agitação. Quando os tempos eram difíceis, como frequentemente sucedia, viam-se serpentear as procissões, dias seguidos, durante semanas. Em 1412 foi dada ordem em Paris para se organizarem procissões implorando a vitória do rei, que havia partido contra os Armanhaques. Duraram desde Maio até Julho e eram formadas por ordens e corporações sempre diferentes, sempre seguindo por diversas ruas e levando de cada vez novas relíquias. O Journal d'un Bourgeois, de Paris, chama-lhes as mais comoventes procissões de que há memória.
O povo contemplava ou acompanhava chorando piedosamente, vertendo muitas lágrimas, com grande devoção. Todos iam descalços e em jejum, tanto os conselheiros do Parlamento como os burgueses pobres. Os que podiam levavam uma tocha ou um círio. Iam sempre muitas crianças. Os camponeses pobres dos arredores de Paris vinham também, descalços, juntar-se à procissão. No entanto em quase todos os dias a chuva caiu torrencialmente. Havia também a chegada dos príncipes, ataviados com todos os recursos da arte e do luxo próprios da época. Por fim, ainda mais frequentemente, quase pode dizer-se ininterruptamente, havia as execuções. A cruel excitação e a rude compaixão suscitadas por uma execução constituíam uma importante base do alimento espiritual do povo. Eram espectáculos nos quais se continha uma moral. Para os crimes horríveis a lei inventava punições atrozes. Em Bruxelas, um jovem incendiário e assassino foi colocado dentro de um círculo de feixes de lenha a arder e atado a uma corrente que girava em torno de um eixo. Ele dirigia aos espectadores apelos comoventes e de tal modo enterneceu os corações que todos desataram a chorar e a sua morte foi considerada como a mais bela que jamais se viu». In Johan Huizinga, O Declínio da Idade Média, tradução de Augusto Abelaira,1960, Editorial Ulisseia, 1985, 1996, ISBN: 978-972-568-017-9.
                   
Cortesia de EUlisseia/JDACT