sábado, 21 de novembro de 2015

A Memória das Palavras (O Gosto de Falar de Mim). José Gomes Ferreira. «Então julga-se que copiamos determinada obra e, afinal, estamos a reproduzir as linhas diferentes e dissemelhantes de qualquer coisa de novo e de ignorado dentro de nós»

jdact e wikipedia

Rosália
«(…) Cuido não andar longe da verdade se afirmar que a minha Aventura Poética começou aí por volta de 1908, tinha eu os meus oito anos. No dia em que reparei (ou procedi como se reparasse) na existência das palavras, extraídas da vaza da algaraviada comum por homens estranhos, incumbidos da missão especial de dizerem o que mais ninguém ousava. (E o quê, afinal? Sei-o hoje por mal dos meus pecados. Lixo secreto, mutilação de sombras, punhais de que só resta o frio, galanteios de sonhos parvos, sexos desenhados na Lua, tentativas vãs de ressuscitar a Criança morta, o ilógico do outro lado da realidade, sóis ocos, fogueiras a arder por dentro das unhas, gritos iniciais, pavor da morte nua, paisagens de punhos cerrados contra ídolos de pó, desejo de embalar o planeta nos braços, regresso às origens, catarse...). No fim de contas as palavras não serviam apenas para meter na ordem gaiatos descompostos, insultar as vizinhas linguareiras da cave ou adormecer com canções o ranho dos miúdos. Dispostas de certa maneira adquiriam outro significado, exprimiam sentimentos e valores que os homens só daquela forma se atreviam a desabafar em voz alta com cerimonial de ritmos pautados.
Tratava-se sem dúvida dum jogo (o que há de mais sério para uma criança), mas dum jogo que, por manifesta singularidade, também agradava às pessoas crescidas. Pelo menos os livros escolares não regateavam elogios clamorosos a esses seres mágicos que acendiam as palavras e as obrigavam, por  assim dizer, a buscar-se umas às outras no papel, carregadas de electricidade de sexos contrários. Não se chamava a Portugal a Pátria de Camões? E à Itália a Pátria de Dante? Brincar com as palavras, rimar, eis o princípio da Grande Aventura. Amor com flor. Querida com vida. Saudade com há-de. Anjinho com caminho e ninho. Frio (pronunciado à lisboeta) com caiu... Estas últimas, aliás, empregues com calor suave de colóquio por um tal João de Deus numa poesia, a Enjeitadinha, a primeira que li e decorei, não sei quando nem onde, e teve o condão (oxalá não esteja a mentir!) de trazer à tona da minha energia inocente a coragem de imitar, o acto inaugural mais importante de todos os artistas que se sonham.
Precisarei de esclarecer que entre este meu jeito de imitar e a famosa teoria do enorme Aristóteles, Poesia é imitação, não existe qualquer contacto de parentesco? No meu caso refere-se apenas ao fenómeno comezinho, embora de primacial transcendência para a propagação da Arte, de repetir, com maior ou menor destreza, a experiência do versejar alheio, os temas consabidos e os sonetos sobre o amor eterno que Petrarca e Camões sentiram para sempre por todos nós. Exercício necessário a que poucos poetas escapam enquanto esperam pela fase do equívoco da imitação, bem mais misterioso e fundo. Então julga-se que copiamos determinada obra e, afinal, estamos a reproduzir as linhas diferentes e dissemelhantes de qualquer coisa de novo e de ignorado dentro de nós. (A esta imitação chama-se, como se sabe, originalidade, cujo exemplo mais elucidativo é o admirável quarteto que Ravel imitou confessadamente de Borodine) Vamos porém à Enjeitadinha, que começava assim:
                 
De que choras tu, anjinho?
Tenho fome e tenho frio!
E só, por este caminho
como a ave que caiu
ainda implume do ninho.

Não, não desdenhem desta peçazita que com tanta ingenuidade pífia me insinuou uma mensagem humana à altura dos meus oito (ou nove, ou dez) anos. Quero-lhe muito porque nela reside talvez a origem e o embrião da parte mais discutida da minha Poesia que alguns classificam de social. Mais: a própria Criança-mito-símbolo, surgida muitos anos depois na insónia gritada de certos poemas de Panfleto contra a Paisagem de Eléctrico e de Café, vejam lá em que secretas entranhas o nefando neo-realismo (mesmo impuro como o meu) se engendrou!, não será também a pobre ave implume de João de Deus, coberta de farrapos de protesto, pálida de existir?» In José Gomes Ferreira, A Memória das Palavras (O Gosto de Falar de Mim), 1965, Publicações dom Quixote, Lisboa, 1991, ISBN 972-200-855-2.

Cortesia de PdQuixote/JDACT