Novas Cartas Portuguesas. Ou de como Maina Mendes pôs ambas as mãos
sobre o corpo e deu um pontapé no cu dos outros legítimos superiores
Número Um
«(…) Pois que toda a literatura é
uma longa carta a um interlocutor invisível, presente, possível ou futura
paixão que liquidamos, alimentamos ou procuramos. E já foi dito que não
interessa tanto o objecto, apenas pretexto, mas antes a paixão; e eu acrescento
que não interessa tanto a paixão, apenas pretexto, mas antes o seu exercício. Não
será portanto necessário perguntarmo-nos se o que nos junta é paixão comum de
exercícios diferentes, ou exercício comum de paixões diferentes. Porque só nos
perguntaremos então qual o modo do nosso exercício, se nostalgia, se vingança.
Sim, sem dúvida que nostalgia é também uma forma de vingança, e vingança uma
forma de nostalgia; em ambos os casos procuramos o que não nos faria recuar; o
que não nos faria destruir. Mas não deixa a paixão de ser a força e o exercício
o seu sentido. Só de nostalgias faremos uma irmandade e um convento, Soror Mariana
das cinco cartas. Só de vinganças, faremos um Outubro, um Maio, e novo mês para
cobrir o calendário. E de nós, o que faremos? Dia 1 de Março de 1971
Número
Dois
Mais do que a paixão: os seus
motivos; a construção dela. Motivos que, peça por peça, a elaboram como um
vitral com as suas imagens à transparência? Não, antes no seu interior visceral
de vidro inteiro. Pensemos o amor no seu jogo através do contentamento: as
palavras uma por uma no bordado empolgante dos sentimentos e dos gestos. A mão
sobre o papel traça com precisão as ideias na carta que, mais do que para o
outro, escrevemos para nosso próprio alimento: o doce alimento da ternura, da
invenção do passado ou o envenenamento da acusação e da vingança, elas próprias
principais elementos da paixão na reconstrução do nosso corpo sempre pronto a
ceder à emoção inventada, mas não falsa. Não é falso se te escrevo: Repara, sequiosa é a faca do teu silêncio a
revolver-se-me bem no interior do ventre... Cobre com os teus dedos os meus
olhos a fim de eu não ver ou não me veja, que te perco e não me odeio. Eis
o ódio, outro principal elemento do amor. Amor cujo objecto nunca será em si a
principal causa, mas apenas o motivo, o ponto de partida, jamais o único
objectivo ou mesmo o fulcro, o outro. E se não acredito em mim o amor como
sentimento totalmente verdadeiro a não ser a partir da minha imperativa
necessidade em inventá-lo (logo já ele é verdadeiro mas tu não), recuso-me a
negá-lo no entanto pois na realidade existe, é em si mesmo: vício, urgência, precipício,
enquanto tu serves apenas de motivação, de início, de peça envolvente em que te
arrasto neste meu muito maior prazer em me sentir apaixonada do que em amar-te.
Neste meu muito maior prazer em dizer que te amo do que na verdade em
querer-te. Não é falso, então, se te escrevo: Sei que te perdi e me afundo, me perco também dentro da minha total
ausência de poder em que me queiras. E assim sofro, aparentemente porque te
amo, mas antes porque perco o motivo de alimento da minha paixão, a quem talvez
bem mais queira do que a ti. Do desvario não me curo, nem da ansiosa vontade de
te ver. Mas aqui por certo será já o desejo e não o amor a causa deste outro
sentimento ou alimento de uma emoção que pode ser tomada apenas por amor e
erradamente entendida de outra maneira que não pelo simples exercício do corpo,
que realmente é. Não nego, portanto, o exercício do amor. O sofrimento como
exercício do mesmo e o mesmo amor como exercício da paixão, qualquer que seja. Que
dou eu então em troca do que me dás? O meu amor. Mais exactamente: o meu amor
por ti. E jamais, pois, nenhuma de nós três: mulher, se entregará sem dano de
si própria e de outrem. Ramificação oculta que transportamos na voragem de nos
sabermos, de nos descobrirmos, na viagem que premeditadamente empreendemos
através de nós próprias na procura ou na entrega. Na sistemática dissecação do
que nos resta? Ou do muito que possuímos? Dia 2 de Março de 1971.
In
Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta, Maria Velho Costa, Novas Cartas
Portuguesas, 1972, edição anotada, Publicações dom Quixote, 1998, 2010, ISBN
978-972-204-011-2.
Cortesia
PdQuixote/JDACT