terça-feira, 3 de novembro de 2015

Novas Cartas Portuguesas. Maria Barreno, Maria Horta, Maria Costa, (As Três Marias). «… uma irmandade e um convento, Soror Mariana das cinco cartas. Só de vinganças, faremos um Outubro, um Maio, e novo mês para cobrir o calendário. E de nós, o que faremos?»

Cortesia de wikipedia 
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Novas Cartas Portuguesas. Ou de como Maina Mendes pôs ambas as mãos sobre o corpo e deu um pontapé no cu dos outros legítimos superiores
Número Um
«(…) Pois que toda a literatura é uma longa carta a um interlocutor invisível, presente, possível ou futura paixão que liquidamos, alimentamos ou procuramos. E já foi dito que não interessa tanto o objecto, apenas pretexto, mas antes a paixão; e eu acrescento que não interessa tanto a paixão, apenas pretexto, mas antes o seu exercício. Não será portanto necessário perguntarmo-nos se o que nos junta é paixão comum de exercícios diferentes, ou exercício comum de paixões diferentes. Porque só nos perguntaremos então qual o modo do nosso exercício, se nostalgia, se vingança. Sim, sem dúvida que nostalgia é também uma forma de vingança, e vingança uma forma de nostalgia; em ambos os casos procuramos o que não nos faria recuar; o que não nos faria destruir. Mas não deixa a paixão de ser a força e o exercício o seu sentido. Só de nostalgias faremos uma irmandade e um convento, Soror Mariana das cinco cartas. Só de vinganças, faremos um Outubro, um Maio, e novo mês para cobrir o calendário. E de nós, o que faremos? Dia 1 de Março de 1971

Número Dois
Mais do que a paixão: os seus motivos; a construção dela. Motivos que, peça por peça, a elaboram como um vitral com as suas imagens à transparência? Não, antes no seu interior visceral de vidro inteiro. Pensemos o amor no seu jogo através do contentamento: as palavras uma por uma no bordado empolgante dos sentimentos e dos gestos. A mão sobre o papel traça com precisão as ideias na carta que, mais do que para o outro, escrevemos para nosso próprio alimento: o doce alimento da ternura, da invenção do passado ou o envenenamento da acusação e da vingança, elas próprias principais elementos da paixão na reconstrução do nosso corpo sempre pronto a ceder à emoção inventada, mas não falsa. Não é falso se te escrevo: Repara, sequiosa é a faca do teu silêncio a revolver-se-me bem no interior do ventre... Cobre com os teus dedos os meus olhos a fim de eu não ver ou não me veja, que te perco e não me odeio. Eis o ódio, outro principal elemento do amor. Amor cujo objecto nunca será em si a principal causa, mas apenas o motivo, o ponto de partida, jamais o único objectivo ou mesmo o fulcro, o outro. E se não acredito em mim o amor como sentimento totalmente verdadeiro a não ser a partir da minha imperativa necessidade em inventá-lo (logo já ele é verdadeiro mas tu não), recuso-me a negá-lo no entanto pois na realidade existe, é em si mesmo: vício, urgência, precipício, enquanto tu serves apenas de motivação, de início, de peça envolvente em que te arrasto neste meu muito maior prazer em me sentir apaixonada do que em amar-te. Neste meu muito maior prazer em dizer que te amo do que na verdade em querer-te. Não é falso, então, se te escrevo: Sei que te perdi e me afundo, me perco também dentro da minha total ausência de poder em que me queiras. E assim sofro, aparentemente porque te amo, mas antes porque perco o motivo de alimento da minha paixão, a quem talvez bem mais queira do que a ti. Do desvario não me curo, nem da ansiosa vontade de te ver. Mas aqui por certo será já o desejo e não o amor a causa deste outro sentimento ou alimento de uma emoção que pode ser tomada apenas por amor e erradamente entendida de outra maneira que não pelo simples exercício do corpo, que realmente é. Não nego, portanto, o exercício do amor. O sofrimento como exercício do mesmo e o mesmo amor como exercício da paixão, qualquer que seja. Que dou eu então em troca do que me dás? O meu amor. Mais exactamente: o meu amor por ti. E jamais, pois, nenhuma de nós três: mulher, se entregará sem dano de si própria e de outrem. Ramificação oculta que transportamos na voragem de nos sabermos, de nos descobrirmos, na viagem que premeditadamente empreendemos através de nós próprias na procura ou na entrega. Na sistemática dissecação do que nos resta? Ou do muito que possuímos? Dia 2 de Março de 1971.

In Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta, Maria Velho Costa, Novas Cartas Portuguesas, 1972, edição anotada, Publicações dom Quixote, 1998, 2010, ISBN 978-972-204-011-2.

Cortesia PdQuixote/JDACT