O Quadrante
«Nas mãos do
anjo, o mostrador das obras
humanas
continua a medir a eternidade
da nossa transitória duração...
Divino e tolerante,
o coração,
que por debaixo da sagrada lousa
palpita,
com infinita
paciência
e compaixão,
deixa-nos avaliar, como podemos,
a sombra que fazemos
no chão...»
humanas
continua a medir a eternidade
da nossa transitória duração...
Divino e tolerante,
o coração,
que por debaixo da sagrada lousa
palpita,
com infinita
paciência
e compaixão,
deixa-nos avaliar, como podemos,
a sombra que fazemos
no chão...»
Exame de consciência
«Por tudo passa o artista:
primeiro, pela alegria
de se julgar criador
no seio da natureza;
depois, por esta tristeza
de ver morrer o que fez,
sem ter nas mãos a certeza
de
erguer o sonho outra vez».
Vagabundagem
«Já me servia ser
marinheiro num rio.
Pilotar um navio
de trazer lenha de Penacova...
Ter uma vela
nesta aguarela
que
se renova».
Poemas de Miguel Torga, in ‘Diário
V’
«Não. O artista, à medida que o
tempo passa, não enriquece. Empobrece, é que é. Devagar, mas ininterruptamente,
foi dando tudo à arte: a seiva, a inteligência, a vida. E acaba por ficar pobre
como Job. O artista velho lembra-me o toco daqueles castanheiros centenários,
só casca, ocos por dentro. O cerne foi-se todo em castanhas». In Coimbra, 8
de Abril de 1949.
Visita à Senhora da Amoreira, que
só consegui ver por uma fresta, aferrolhada como estava na sua capelinha,
erguida num dos cocurutos da serra. Causou-me sempre muita aflição a clausura
preventiva dos nossos santos nos seus ermos. O pânico deles testemunha uma
impotência apostólica desanimadora. No fundo, apesar de divinos, necessitam de
viver fortificados, como qualquer mortal. In Marão, 10 de Abril de 1949.
Queima do Judas no largo da Sé. Há
tantos anos a destruir este símbolo, e não há maneira! Dá a impressão de que é
preciso mudar de método. Talvez não seja solução alimentar os pecados o ano
inteiro, e liquidá-los no fim com o perdão ou com a execução. Lembrava-me, por
exemplo, de varrer todos os velhos símbolos duma certa ordem social que não
anda para trás nem para diante, e dar cartas de novo. Tenho quase a certeza de
que a multidão que assistiu comigo ao espectáculo estava a ver arder o traidor
e a senti-lo renascer nas sombras do próprio coração. In Lamego, 16 de Abril
de 1949.
Uma trovoada no mar, que, mesmo
afastada, me deixou sem acção. É um medo pânico que sinto, impermeável a
qualquer razão. As forças criadas pelo homem, sejam elas quais forem, nunca me
venceram. Mas os coices da natureza apavoram-me. É que não há ninguém que
assuma a responsabilidade deles». In Foz, 18 de Abril de 1949.
In Miguel
Torga, Diário, Coimbra, 1951, volumes V a VIII, 5ª Edição conjunta, Publicações
dom Quixote, ISBN: 978-972-203-898-0.
Cortesia de
PdQuixote/JDACT