«(…) A teoria do conhecimento é a
marca da modernidade e das suas alterações decorrentes no pensamento, que agora
deve tematizar não uma substância no sentido cosmológico, mas a relação cindida
entre a subjectividade e a natureza, sendo uma externa à outra. Essa relação é
constituída de forma representativa, na qual o conhecimento seria a
representação de algo fora do pensamento, o que marcaria uma independência do
pensar frente ao objecto, mais do que isto uma reelaboração do mesmo objecto
pela mediação da subjectividade, que agora é activa no processo cognoscitivo.
Nesse processo, o entendimento exerce uma função abstractiva essencial, em que
a realidade é representada em seu cerne. Para Hegel, essa forma abstracta do
entendimento é o que se objectivou na modernidade, e com ela uma mediação subjectiva
que não abarca a realidade que pretende conhecer. Assim, o conhecer seria um
meio que se interpõe entre o saber subjectivo de algo e a realidade objectiva
desse algo, estabelecendo, então, uma separação entre o pensar e o real, como
se o próprio conhecimento se constituísse num instrumento para o conhecer ou o
meio pelo qual conhecemos. Tanto em sua forma activa quanto na sua forma
passiva, a representação cinde a realidade entre o conhecido (subjectivo,
para-si) e o desconhecido (objectivo, em-si). Poderíamos dizer que o Absoluto
cindiu-se de si mesmo. Assim, em tal operação de mediação subjectiva da
representação, segundo Hegel: não há por que atormentar-se,
buscando respostas a essas representações inúteis e modos de falar sobre o
conhecer, como instrumento para apoderar-se do absoluto, ou como meio através
do qual divisamos a verdade etc. São relações em que vêm a dar, com certeza,
todas essas representações de um absoluto separado do conhecer, ou de um
conhecer separado do absoluto.
Toda
a crítica da teoria do conhecimento, que Hegel efectua na introdução da Fenomenologia
do espírito, tem como alvo essencial não só atingir a posição moderna de
forma universal, porém, particularmente, as posições de Kant e do cripticismo
(seus sucessores: Fichte, Reinhold e outros) como filosofias reflexivas da
consciência. A filosofia kantiana, nas suas linhas gerais, pode ser posta no
ápice da posição moderna, e marca a chegada da epistemologia ao seu ponto
culminante, o que para Kant significava uma reestruturação de toda forma de
compreensão do conhecimento humano, que ele mesmo denominou de revolução copernicana do pensar. O
conhecimento da metafísica deve encontrar os seus limites, da mesma forma como
as ciências naturais, e, antes dessas, a matemática e a lógica encontraram os
seus, podendo, assim, descansar num porto seguro. Nisso mostra-se o ponto
fundamental da filosofia kantiana: a metafísica clássica, que tinha como
parâmetro o ente, ontologicamente definido, só conseguia tactear no escuro, não se constituindo e nem ao menos se
desenvolvendo como as ciências naturais.
O
problema do conhecimento que surge da pergunta pela natureza e possibilidade do
conhecimento se depara-se na modernidade com duas grandes correntes, que de uma
forma ou de outra almejavam resolvê-lo. De um lado, havia os racionalistas,
para quem o conhecimento deriva de ideias inatas, anteriores à experiência. De
outro lado, os empiristas, que afirmavam que o conhecimento era adquirido pela
experiência. Em meio a essa querela, Kant tenta, na sua teoria da
experiência, articular esses dois níveis do conhecimento, na sua denominada
filosofia crítica. O conceito de crítica aqui é, então, de forma
bem-determinada, a busca por critérios para fundamentar a possibilidade, a
capacidade, o limite do conhecimento, o qual não poderia se dar de forma
dogmatista, que seria a utilização da inteligência e dos conceitos antes de se
perguntar pela capacidade de conhecermos os objectos em si mesmos. Essa luta
contra o dogmatismo foi essencialmente influenciada pelo encontro de Kant com
as obras de Hume, a quem deve, como afirma o próprio Kant, o seu despertar do sonho dogmático. A ressalva
fundamental que Kant faz a Hume é ter, com a sua crítica ao conceito metafísico
de causa e efeito, também criticado o saber real das ciências naturais e, com
isto, relegou toda forma de conhecimento ao hábito». In Alexandre Moura Barbosa,
Ciência e Experiência, Ensaio sobre a Fenomenologia do espírito de Hegel,
Editora Universitária, Edipucrs, Porto Alegre, 2010, ISBN 978-85-7430-970-5.
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