domingo, 29 de novembro de 2015

Fogos. 1935. Prosas Líricas. Marguerite Yourcenar. «Apenas Patroclo resistia ao encanto, rompia-o como uma espada nua. Um grito de admiração de Deidamia designou-o à atenção de Aquiles que mergulhou contra essa espada brilhante…»

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«Solidão... Não creio como os outros crêem, não vivo como os outros vivem, não amo como os outros amam... Mas morrerei como todos morrem». In Marguerite Yourcenar

«(…) O abrigo feminino onde a sua mãe o fechava transformava-se, para aquele emboscado, numa sublime aventura; tratava-se de entrar, debaixo da protecção de um corpete ou de um vestido, nesse vasto continente inexplorado das mulheres, onde o homem não penetrou até agora senão como vencedor, à luz dos incêndios do amor. Trânsfuga do campo dos machos, Aquiles vinha arriscar aqui a oportunidade única de ser algo mais que ele próprio. Para os escravos, pertencia à raça assexuada dos amos; o pai de Deidamia levava a aberração até amar nele a virgem que ele não era; apenas as duas primas se recusavam a acreditar naquela rapariga demasiado parecida com a imagem ideal que um homem faz das mulheres. Aquele rapaz ignorante das realidades do amor começava no leito de Deidamia a aprendizagem das lutas, das agonias, dos subterfúgios; o seu desfalecimento sobre aquela tenra vítima servia de substituto a uma alegria mais terrível que ele não sabia onde ir buscar, de que ignorava o nome, e que não era senão a Morte. O amor de Deidamia, os ciúmes de Misandre, voltavam a fazer dele o duro contrário de uma rapariga. As paixões ondulavam na torre como écharpes atormentadas pela brisa: Aquiles e Deidamia odiavam-se como aqueles que se amam; Misandre e Aquiles amavam-se como aqueles que se odeiam. Essa inimiga musculada tornava-se para Aquiles no equivalente de um irmão; esse rival delicioso enternecia Misandre como uma espécie de irmã. Cada onda que passava sobre a ilha trazia mensagens: cadáveres gregos, arrastados para o mar alto por ventos inauditos, eram outras tantas embarcações da armada naufragada, por falta de socorro de Aquiles; projectores buscavam-no no céu sob um disfarce de astro.
A glória, a guerra, vagamente entrevistas nas brumas do futuro, faziam-lhe o efeito de amantes exigentes cuja posse o obrigaria a demasiados crimes: ele pensava escapar do fundo dessa prisão de mulheres por solicitação das suas vítimas futuras. Uma grande barca de reis deteve-se aos pés do farol extinto que não era senão mais um escolho: Ulisses, Patroclo, Tersites, advertidos por uma carta anónima, tinham anunciado a sua visita às princesas; Misandre, repentinamente complacente, ajudava Deidamia a pôr ganchos na cabeleira de Aquiles. As suas grandes mãos tremiam como se tivesse acabado de deixar fugir um segredo. As portas abertas de par em par deixaram entrar a noite, os reis, o vento, o céu cheio de sinais. Tersites soprava, fatigado pelas escadas de mil degraus, esfregando entre as mãos os joelhos pontiagudos de enfermo: tinha o ar de um rei que por avareza se tivesse tornado no seu próprio truão. Patroclo, hesitando diante desse furão escondido no interior das Damas, estendia ao acaso as mãos com luvas de ferro.
A cabeça de Ulisses fazia pensar numa moeda usada, gasta, enferrujada, onde se viam ainda os traços do rei de Ítaca: a mão em pala sobre os olhos, como no cimo de um mastro, examinava as princesas encostadas à parede como uma tripla estátua de mulher; e os cabelos curtos de Misandre, as suas grandes mãos que sacudiam as dos chefes, o seu à-vontade, fizeram-no tomá-la primeiro como o esconderijo de um macho. Os marinheiros da escolta abriam as caixas, desembalavam, misturadas com os espelhos, as jóias, os estojos de esmalte, as armas que Aquiles por certo se apressaria a brandir. Mas os cascos manuseados pelas seis mãos maquilhadas lembravam aqueles de que se serviam os cabeleireiros; os cinturões amolecidos transformavam-se em cintos; nos braços de Deidamia, um escudo redondo parecia um berço. Como se o disfarce fosse uma má sorte a que ninguém escapava na ilha, o ouro transformava-se em vermelho, os marinheiros em travestis, e os dois reis em vendedores ambulantes. Apenas Patroclo resistia ao encanto, rompia-o como uma espada nua. Um grito de admiração de Deidamia designou-o à atenção de Aquiles que mergulhou contra essa espada brilhante, tomou entre as mãos a dura cabeça ciselada, como o punho de um gládio, sem se aperceber que os seus véus, as suas pulseiras, os seus anéis, faziam do seu gesto um transporte de apaixonada. A lealdade, a amizade, o heroísmo deixavam de ser palavras que serviam para os hipócritas mascararem as suas almas; a lealdade, eram esses olhos que se tinham mantido límpidos diante daquele amontoado de mentiras; a amizade seria os seus corações; a glória o seu duplo futuro». In Marguerite Yourcenar, Feux, 1935, Éditions Galimard, 1974, Difel, Lisboa, 1995, ISBN 972-29-0315-2.

Cortesia Difel/JDACT