«Solidão...
Não creio como os outros crêem, não vivo como os outros vivem, não amo como os
outros amam... Mas morrerei como todos morrem». In Marguerite
Yourcenar
«(…)
O abrigo feminino onde a sua mãe o fechava transformava-se, para aquele emboscado,
numa sublime aventura; tratava-se de entrar, debaixo da protecção de um corpete
ou de um vestido, nesse vasto continente inexplorado das mulheres, onde o homem
não penetrou até agora senão como vencedor, à luz dos incêndios do amor. Trânsfuga
do campo dos machos, Aquiles vinha arriscar aqui a oportunidade única de ser algo
mais que ele próprio. Para os escravos, pertencia à raça assexuada dos amos; o
pai de Deidamia levava a aberração até amar nele a virgem que ele não era;
apenas as duas primas se recusavam a acreditar naquela rapariga demasiado
parecida com a imagem ideal que um homem faz das mulheres. Aquele rapaz
ignorante das realidades do amor começava no leito de Deidamia a aprendizagem
das lutas, das agonias, dos subterfúgios; o seu desfalecimento sobre aquela
tenra vítima servia de substituto a uma alegria mais terrível que ele não sabia
onde ir buscar, de que ignorava o nome, e que não era senão a Morte. O amor de
Deidamia, os ciúmes de Misandre, voltavam a fazer dele o duro contrário de uma
rapariga. As paixões ondulavam na torre como écharpes atormentadas pela brisa: Aquiles e Deidamia odiavam-se
como aqueles que se amam; Misandre e Aquiles amavam-se como aqueles que se
odeiam. Essa inimiga musculada tornava-se para Aquiles no equivalente de um irmão;
esse rival delicioso enternecia Misandre como uma espécie de irmã. Cada onda
que passava sobre a ilha trazia mensagens: cadáveres gregos, arrastados para o
mar alto por ventos inauditos, eram outras tantas embarcações da armada
naufragada, por falta de socorro de Aquiles; projectores buscavam-no no céu sob
um disfarce de astro.
A
glória, a guerra, vagamente entrevistas nas brumas do futuro, faziam-lhe o efeito
de amantes exigentes cuja posse o obrigaria a demasiados crimes: ele pensava
escapar do fundo dessa prisão de mulheres por solicitação das suas vítimas
futuras. Uma grande barca de reis deteve-se aos pés do farol extinto que não
era senão mais um escolho: Ulisses, Patroclo, Tersites, advertidos por uma
carta anónima, tinham anunciado a sua visita às princesas; Misandre,
repentinamente complacente, ajudava Deidamia a pôr ganchos na cabeleira de
Aquiles. As suas grandes mãos tremiam como se tivesse acabado de deixar fugir
um segredo. As portas abertas de par em par deixaram entrar a noite, os reis, o
vento, o céu cheio de sinais. Tersites soprava, fatigado pelas escadas de mil
degraus, esfregando entre as mãos os joelhos pontiagudos de enfermo: tinha o ar
de um rei que por avareza se tivesse tornado no seu próprio truão. Patroclo, hesitando
diante desse furão escondido no interior das Damas, estendia ao acaso as mãos
com luvas de ferro.
A
cabeça de Ulisses fazia pensar numa moeda usada, gasta, enferrujada, onde se
viam ainda os traços do rei de Ítaca: a mão em pala sobre os olhos, como no cimo
de um mastro, examinava as princesas encostadas à parede como uma tripla
estátua de mulher; e os cabelos curtos de Misandre, as suas grandes mãos que
sacudiam as dos chefes, o seu à-vontade, fizeram-no tomá-la primeiro como o
esconderijo de um macho. Os marinheiros da escolta abriam as caixas,
desembalavam, misturadas com os espelhos, as jóias, os estojos de esmalte, as
armas que Aquiles por certo se apressaria a brandir. Mas os cascos manuseados
pelas seis mãos maquilhadas lembravam aqueles de que se serviam os
cabeleireiros; os cinturões amolecidos transformavam-se em cintos; nos braços
de Deidamia, um escudo redondo parecia um berço. Como se o disfarce fosse uma
má sorte a que ninguém escapava na ilha, o ouro transformava-se em vermelho, os
marinheiros em travestis, e os dois
reis em vendedores ambulantes. Apenas Patroclo resistia ao encanto, rompia-o
como uma espada nua. Um grito de admiração de Deidamia designou-o à atenção de
Aquiles que mergulhou contra essa espada brilhante, tomou entre as mãos a dura
cabeça ciselada, como o punho de um gládio, sem se aperceber que os seus véus,
as suas pulseiras, os seus anéis, faziam do seu gesto um transporte de
apaixonada. A lealdade, a amizade, o heroísmo deixavam de ser palavras que
serviam para os hipócritas mascararem as suas almas; a lealdade, eram esses
olhos que se tinham mantido límpidos diante daquele amontoado de mentiras; a
amizade seria os seus corações; a glória o seu duplo futuro». In
Marguerite Yourcenar, Feux, 1935, Éditions Galimard, 1974, Difel, Lisboa, 1995,
ISBN 972-29-0315-2.
Cortesia
Difel/JDACT