Nota
Prévia
«(…) Só isto bastaria para
conferir um incalculável valor às cartas que adiante se publicam; bem como ao
relato-testemunho de que elas são precedidas. Por outro lado, estava-se geralmente
bem longe de supor, pelos extractos de apenas treze cartas anteriormente
publicados, que elas afinal constituíssem, na sua totalidade, este conjunto de
meia-centena de tão diferentes textos de natureza intima; e estava-se
igualmente bem longe de suspeitar que neles tão amiúde se manifestassem certos
traços de humor, da bonomia, de ternura, até de surpreendente puerilidade, a,
par, evidentemente, como já se sabia ou se calculava, de certos registos de
diverso teor, tanto mais comoventes quanto mais espontâneos, tanto mais
patéticos quanto mais contidos. Por se tratar de uma primeira edição, respeitou-se
escrupulosamente a grafia original (sem prejuízo, pois, de em edições
ulteriores ela vir a ser actualizada); respeitou-se também o modo bem pouco
uniforme como Fernando Pessoa datava as suas cartas; e entendeu-se ainda, quanto
às duas únicas que não trazem data, embora se mostre conjecturável a sua
inserção no conjunto, que o mais prudente seria, por agora, relegá-las para um
apêndice, onde igualmente se arquiva uma carta que, não sendo especificamente
dirigida à destinatária, esta última teve o cuidado de religiosamente conservar
também. Completa enfim o presente volume um posfácio de natureza crítica sobre
o significado destas mesmas cartas. Posfácio esse que obviamente não tem a
veleidade de esgotar o assunto (e qual o assunto referente a Fernando Pessoa
que possa alguma vez considerar-se esgotado?), mas tão-só o propósito de
pessoalmente reflectir sobre estes textos com que doravante se acrescenta a bibliografia
activa do grande poeta, e de, a seu respeito, ir desde já adiantando umas tantas
sugestões». In David Mourão Ferreira
O
Fernando e Eu
(Relato da dona Ophélia Queiroz, destinatária
destas Cartas de Fernando Pessoa, recolhido e estruturado por sua sobrinha-neta
dona Maria da Graça Queiroz)
Onde é que a
maldade mora
Poucos sabem onde
é
Há maneira de o
saber
É em quem quando
diz que chora
Leva a rir e a
responder
Indo em crueldade
até
A
gente
não a entender
(Acróstico de Fernando Pessoa dedicado
a Ophélia)
Como
conheci o Fernando
Respondi a um anúncio do Diário de Noticias. Tinha 19
anos, era alegre, esperta, independente, e, contra a vontade de meus pais e da
família, resolvi empregar-me. Não era que precisasse de o fazer, pois sendo a
mais nova de oito irmãos e a única solteira, era muito mimada e tinha tudo o
que queria. Fizera o 5.º ano singular de Francês, escrevia e falava
correntemente o Francês comercial, escrevia à máquina em todos os teclados e sabia
também um pouco de Inglês. (O Fernando um dia até me disse que, depois de casados,
mo ensinaria melhor). Recebi em casa a resposta ao anúncio: … para assunto de seu interesse, é favor
passar por esta direcção...» Era um negócio de brocas, na Rua da Assunção,
42, 2°: Félix, Valladas & Freitas, Lda. Ainda estava em regime de
propaganda e só durou três meses; depois faliu. Entrei como empregada única da
casa a ganhar 18$00, o que já era óptimo naquele tempo... De entrada, até só
queriam dar-me 15$00, e foi o próprio Fernando que insistiu para que me dessem
o que eu pedia, porque, segundo me disse mais tarde, tinha absoluta necessidade de me tornar a ver; de resto, eu senti,
logo no primeiro dia, que ele me olhou de certa maneira...
Eram três sócios: Félix, o
capitalista; o Mário Freitas Costa, que era primo do Fernando; e o Valladas,
que era da Guarda Nacional Republicana. O Fernando não era propriamente
empregado da casa, não sei mesmo se ganhava alguma coisa. Ajudava o primo na
correspondência da firma. Traduzia directamente para francês e inglês o que o
primo ditava em português. Como se sabe, o Fernando falava muitíssimo bem,
principalmente, o inglês. Os amigos diziam, por graça, que ele até pensava
em Inglês. Ia muito ao escritório, exactamente por ser primo e muito amigo
do Freitas, e porque se juntavam lá, a conversar, vários amigos. Entre eles,
lembro-me do Montalvor, que ia lá quase todos os dias e que não perdoava ao
Fernando o facto de ele não publicar a sua Obra. Dizia-lhe: ó Fernando, é um crime você continuar ignorado.
E ele respondia-lhe: Deixem estar, que,
quando eu morrer, ficam cá caixotes cheios. Aparecia também o Ferreira
Gomes, que tinha igualmente uma grande admiração pelo Fernando. Mais tarde, por
acaso, fui encontrá-lo no SNI. Era muito brincalhão.
O
Coelho Jesus. Com este passou-se uma coisa engraçada. Ele conhecia-me lá do escritório
mas nunca se apercebeu, assim como ninguém, que eu namorava o Fernando. Um dia,
seguiu-me na rua. Quando chegámos ao Largo do Camões, aproximou-se de mim,
cumprimentou-me e disse-me: Posso
acompanhá-la, ou comprometo-a? Compromete
sim, respondi-lhe. O Simão Laboreiro, que era director de um jornal. Um
irmão do Coelho de Jesus. Pantoja, um espanhol, e outros mais de quem não me
recordo agora. Apareciam, então, muitos rapazes novos, a pedir ao Fernando a
sua colaboração para jornais e revistas. E era coisa que ele nunca recusava. Conheci
o Fernando no dia em que me apresentei ao anúncio e há, até, uma história engraçada,
que vale a pena contar». In Fernando Pessoa, Cartas de Amor,
Organização de David Mourão Ferreira, preâmbulo de Maria da Graça Queiroz, Lisboa,
Edições Ática, 1978.
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