segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Contos fantásticos do século XIX. O visionário e o quotidiano. Organização de Italo Calvino. «Assim como o conto filosófico setecentista foi a expressão paradoxal da razão iluminista, o conto fantástico nasceu na Alemanha como o sonho de olhos abertos do idealismo…»

Cortesia de wikipedia

«O conto fantástico é uma das produções mais características da narrativa do século XIX e também uma das mais significativas para nós, já que nos diz muitas coisas sobre a interioridade do indivíduo e sobre a simbologia colectiva. A nossa sensibilidade de hoje, o elemento sobrenatural que ocupa o centro desses enredos, aparece sempre carregado de sentido, como a irrupção do inconsciente, do reprimido, do esquecido, do que se distanciou de nossa atenção racional. Aí estão a modernidade do fantástico e a razão da volta do seu prestígio em nossa época. Sentimos que o fantástico diz coisas que se referem directamente a nós, embora estejamos menos dispostos do que os leitores do século passado a nos deixarmos surpreender por aparições e fantasmagorias, ou melhor, estamos prontos a apreciá-las de outro modo, como elementos da cor da época. É no terreno específico da especulação filosófica entre os séculos XVIII e XIX que o conto fantástico nasce: seu tema é a relação entre a realidade do mundo que habitamos e conhecemos por meio da percepção e a realidade do mundo do pensamento que mora em nós e nos comanda. O problema da realidade daquilo que se vê, coisas extraordinárias que talvez sejam alucinações projectadas por nossa mente; coisas habituais que talvez ocultem sob a aparência mais banal uma segunda natureza inquietante, misteriosa, aterradora, é a essência da literatura fantástica, cujos melhores efeitos se encontram na oscilação de níveis de realidades inconciliáveis.
Tzvetan Todorov, em sua Introduction à la littérature fantastique (1970), afirma que aquilo que distingue o fantástico narrativo é precisamente uma perplexidade diante de um facto inacreditável, uma hesitação entre uma explicação racional e realista e o acatamento do sobrenatural. Entretanto, a personagem do incrédulo positivista que aparece frequentemente nesse tipo de narrativa, vista com piedade e sarcasmo porque deve render-se ao que não sabe explicar, nunca é contestada em profundidade. De acordo com Todorov, o facto extraordinário que o conto narra deve deixar sempre uma possibilidade de explicação racional, ainda que seja a da alucinação ou do sonho (boa tampa para todas as panelas).
Já o maravilhoso, também conforme Todorov, se distingue do fantástico na medida em que pressupõe a aceitação do inverosímil e do inexplicável, tal como ocorre nas fábulas das Mil e uma noites. (Distinção que se aplica à terminologia literária francesa, em que o fantastique quase sempre se refere a elementos macabros, como aparições de fantasmas do além. Já o uso italiano associa mais livremente fantástico a fantasia; de facto, falamos de fantástico ariostiano quando, segundo a terminologia francesa, deveríamos dizer o maravilhoso ariostiano). É com o romantismo alemão que o conto fantástico nasce, no início do século XIX; mas já na segunda metade do século XVIII o romance gótico inglês havia explorado um repertório de temas, ambiente e efeitos (sobretudo macabros, cruéis, apavorantes) do qual os escritores do romantismo beberiam abundantemente. E, posto que um dos primeiros nomes que sobressaem entre estes (pela perfeita factura de Peter Schlemihl) pertence a um autor alemão de origem francesa, Chamisso, que acrescenta à sua cristalina prosa alemã a leveza setecentista tipicamente francesa, a componente francesa se apresenta desde os primórdios como essencial.
A herança que o século XVIII francês deixa ao conto fantástico do romantismo é de dois tipos: há a pompa espectacular do conto maravilhoso (do féerique da corte de Luís XIV às fantasmagorias orientais das Mil e uma noites, descobertas e traduzidas
por Galland) e há o desenho linear, rápido e cortante do conto filosófico voltairiano, onde nada é gratuito e tudo mira a um final. Assim como o conto filosófico setecentista foi a expressão paradoxal da razão iluminista, o conto fantástico nasceu na Alemanha como o sonho de olhos abertos do idealismo alemão, com a intenção declarada de representar a realidade do mundo interior e subjectivo da mente, da imaginação, conferindo a ela uma dignidade equivalente ou maior do que a do mundo da objectividade e dos sentidos. Portanto, o conto fantástico é também filosófico, e aqui um nome se destaca entre todos: Hoffmann». Organização de Italo Calvino, Contos fantásticos do século XIX, O fantástico visionário e o fantástico quotidiano, 1983, vários tradutores, Companhia das Letras, São Paulo, 2004, ISBN 978-853-590-502-1.

Cortesia da CdasLetras/JDACT