terça-feira, 10 de novembro de 2015

O Carteiro de Fernando Pessoa. Fernando E. Pinto. «Não tinha dúvidas: entre o amor e a conspiração não havia ciência apropriada que esclarecesse o tumulto que sentia no coração. Desapontado, decidiu recuar»

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Não há melhor fragata do que um livro para nos levar a terras distantes. In E. Dickinson

«(…) Um abrir e fechar de portas que levou Alberto Reis a imaginar que também a vizinha do primeiro andar esquerdo entrava em cena, tal era o dramatismo das fechaduras e o palavreado incompreensível que aí se mantinha. E mesmo que o poeta já se tivesse ausentado com as cartas que lhe correspondiam, fechando delicadamente a porta, indiferente a distracções de circunstância e conversas inúteis, Alberto Reis decidiu arriscar meia dúzia de degraus e, rente à parede, tentou interpretar de forma esclarecida o conteúdo da conversa entre o carteiro e a senhora Ofélia. Em todo o caso, a possibilidade de Alberto Reis se manter activo passava por estas manobras de vigilância. Não desejava de modo algum intrometer-se na vida privada dos inquilinos do prédio, apesar de sentir ainda a sua veia investigadora cheia de interpretações intuitivas e correr nela uma espécie de conflitualidade que o levava a interessar-se por situações estranhas e mistérios por resolver.
A conversa entre o carteiro e a senhora Ofélia, da qual Alberto Reis apenas ouviu algumas frases sem nexo, tal era a fronteira imposta por eles para que as palavras não subissem de tom e ficassem um furo abaixo da compreensão de quem por acaso pudesse ouvi-las, tinha ultrapassado a linha da ocasionalidade. Assim entendia Alberto Reis, agora uns degraus mais abaixo, com receio de ser surpreendido na calma disciplina que fazia dele um homem demasiado subtil e prudente. Além disso, pensava o velho polícia, tanta familiaridade entre um carteiro insignificante e uma mulher com inclinações para relacionamentos selectivos levantava-lhe suspeitas e revelava uma ambição social estranha. Também podia dar-se o caso de esta proximidade ter como finalidade o desenvolvimento de uma relação amorosa. A ser verdade, e só de pensar na possibilidade de uma agradável comunhão entre os dois, Alberto Reis sentia-se sufocar
de ciúmes.
De qualquer modo, e porque não tinha provas de nenhum romance, os seus sentidos estavam todos em pleno esforço de captação do teor da conversa no primeiro andar. Movido pelo desespero e afrontado pela impaciência, ainda arriscou a subida de dois degraus, e foi então que percebeu pelas vozes abafadas que se escapavam pela porta entreaberta que o carteiro estava dentro do apartamento da senhora Ofélia. Não tinha dúvidas: entre o amor e a conspiração não havia ciência apropriada que esclarecesse o tumulto que sentia no coração. Desapontado, decidiu recuar. Lutava agora para que as suas emoções não alastrassem em doses de insatisfação e melindre e lhe toldassem por completo as convicções policiais. É verdade que todo este esforço de clarificação o afectava e punha à prova aprendizagens de recurso em situações de dúvida e complexidade. Foi com esta tímida sensação de fracasso que Alberto Reis saiu do prédio e, pensativo, andou às voltas no passeio a planear outras formas de eliminar algumas barreiras que o limitavam na gestão de determinadas abordagens. Pessoalmente via-se como um indivíduo seguro e com uma dimensão humana capaz de suportar o mais poderoso caudal de adversidades. Não obstante certas dificuldades, tudo tinha uma solução e qualquer ideia de azar ou derrota que lhe sobreviesse desenvolvia nele uma capacidade prodigiosa de colher do mal pistas credíveis para a consagração do bem, muito embora esta transacção do mal para o bem fosse discutível e estivesse, de facto, policiada pela sua lealdade à ordem e defendida por uma excessiva ambição de controlar os outros». In Fernando Esteves Pinto, O Carteiro de Fernando Pessoa, Baía dasPalavras, Edições Parsifal, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-98521-0-5.

Cortesia de Parsifal/JDACT