quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Madalena. História e Mito. Helena Barbas. « Etimologicamente, heresia vem do grego hairesis e significará escolha, enquanto herege vem do latim tardio haireticu, derivado do grego hairetikós através do provençal antigo heretge…»

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Madalena e os Evangelhos Gnósticos
«(…) A distinção entre Evangelhos Apócrifos e Evangelhos Gnósticos resulta de catalogações históricas fundamentadas em questões de conteúdo. Como se disse, os Apócrifos não exibem erros dogmáticos evidentes e os que apresentam talvez não incomodem muito porque, na sua maioria, se dedicam à infância e adolescência de Jesus. Por sua vez, os outros documentos, em grande parte relatando os eventos posteriores à Ressurreição, são refutados com base em argumentos de heresia, em particular gnóstica. Funda-se esta no facto de Valentim (c.100-160d.C.) e Marcião de Sinope (c.110-160), por exemplo, defenderem que só os seus próprios evangelhos e revelações apresentam os ensinamentos secretos de Jesus: Estes escritos contam inumeráveis histórias sobre o Cristo ressuscitado, o ser espiritual que Jesus representava, uma figura que os fascinava muito mais do que o Jesus meramente humano, o obscuro Rabi de Nazaré. Os escritos gnósticos começam onde os Evangelhos acabam, narrando os encontros do Cristo espiritual com os seus discípulos. Assim, estes textos exibem uma marcada vertente cristológica, justificada pelo duplo objectivo de enraizamento na tradição cristã, e mais ou menos discreto desvio face a essa forma de pensamento, uma heresia.

Heresia. Escolha, opção
Etimologicamente, heresia vem do grego hairesis e significará escolha, enquanto herege vem do latim tardio haireticu, derivado do grego hairetikós através do provençal antigo heretge, com o sentido de partidarista. S. Tomás d’Aquino define heresia como uma espécie de infidelidade dos homens que, tendo professado a fé de Cristo, corrompem os seus dogmas. Em ambos os casos afirma-se o termo pela sua qualidade de independência e escolha face a um cânone ou credo prescrito por terceiros. Herege será quem recusa as ideias e normas ditadas por outros, muitas das vezes acabando por criar as suas próprias regras. Por tal, os textos heréticos serão aqueles que, de algum modo negam ou subvertem o dogma que pretende impor a Igreja nascente. Conhecidos pelo período de estabelecimento dos Evangelhos ortodoxos terão inclusive, como se viu, fundamentado a necessidade de criação do cânone.

Os caçadores de heresias
A notícia destes textos e das seitas gnósticas chegaram-nos pela pena dos padres da Igreja, os caçadores de heresias dos séculos II e III da nossa era: Justino o Mártir, Ireneu de Lião, Hipólito de Roma, Clemente de Alexandria, Orígenes, Tertuliano e o pagão Plotino. Todos referem os diferentes tratados de um modo parcelar e tendencioso, pois têm como objectivo confesso defender os dogmas, evitar os desvios. Embora o termo gnosticismo só tenha sido cunhado pelo século XVIII, são os caçadores de heresias quem apelida indiscriminadamente de gnósticos todos os heréticos que combatem. Consideram-nos como duplamente perigosos, seja por se auto-denominarem cristãos, seja por se assumirem como depositários de ensinamentos transmitidos, mais ou menos secretamente, pelo Salvador aos apóstolos. Recorrem tanto ao Antigo como ao Novo Testamento, daqui variando as suas denominações, e defendem-se argumentando com Marcos (a quem, também anda atribuído um segundo Evangelho oculto): Marcos, Quando ficaram sozinhos, os que estavam junto dele com os Doze o interrogaram sobre as parábolas. Dizia-lhes: A vós foi dado o mistério do Reino de Deus; aos de fora, porém, tudo acontece em parábolas, a fim de que: vendo, vejam e não percebam; e ouvindo, ouçam e não entendam; para que não se convertam e não sejam perdoados.
Apoiam-se, assim, numa tradição esotérica reportada oralmente por Jesus aos discípulos, que complementaria o ensinamento exotérico veiculado em público e registado no Novo Testamento. Daqui sucede que cada seita acabe por se colocar sob a égide de algum dos doze apóstolos, organizando-se em torno de variados evangelhos pretensamente elaborados por qualquer dos discípulos mais próximos de Cristo, ou fabricados por contemporâneos com maior entendimento e habilidade para interpretar as escrituras. Ireneu, o presbítero de Lião, acusa todos os gnósticos de mutilar as escrituras, de usar excertos e citações em proveito próprio, de deturpar os textos de modo a que provem as suas elucubrações incorrectas. Além da proximidade, da mistura acrítica de informações de proveniência vária (contaminar os textos sagrados com oráculos antigos e pregações do presente, por exemplo), incomoda-o afirmarem possuir um conhecimento superior.
As refutações dos heresiólogos de mais peso provam que as variantes das narrativas evangélicas eram conhecidas ao seu tempo, e eles próprios acabam a servir de intermediários na sua difusão pelo Ocidente, atravessando a Idade Média e o Renascimento. Expurgam os escritos, sujeitam-nos a um resumo redutor que ignora diferenças, por vezes fundamentais e antagónicas entre as várias heresias. Num levantamento sumário encontram-se perto de 40 variedades. Isto porque, ao alcançar a iluminação, cada indivíduo deverá escrever o seu próprio evangelho, original e único como a revelação que recebeu. As acusações e críticas, desta vez aos heresiólogos, foram crescendo de par com a lenta descoberta de manuscritos gnósticos ao longo dos séculos. Adquiriram um novo impulso com o aparecimento do extraordinário corpus da Biblioteca de Nag Hammadi em 1945». In Helena Barbas, Madalena, História e Mito, Ésquilo Edições, Lisboa, 2008, ISBN 978-989-8092-29-8.

Cortesia de Ésquilo/JDACT