Sátiras a Trovadores e Jograis
«(…) Evito errar e
cantarei quando quiserdes! Ora, conheço-vos bem, Picandon, e peço desculpa do
que disse!, exclama por fim Soárez Coelho. E o italiano responde: João Soares,
perdoo-vos de todo o coração. Dai-me uma recompensa e protegei-me onde estiverdes.
Por generoso que fosse o magnate João Soárez Coelho, não discutiria a sério com
um pobre jogral, para no fim lhe pedir que o desculpasse. Eram discussões à
maneira de quem jogueta, para empregar um vocábulo arcaico. Pero Ambroa
troça burlescamente do seu colega Pedro Amigo Sevilha: Imaginem, retirou-se do mundo
para uma ermida velha e ali faz penitência rigorosa! E desta maneira tira
desforra do que Pedro Amigo afirmou acerca da sua ida à Terra Santa.
Neste caso, talvez fosse
uma disputa a sério. Mas dá-se o contrário na tenção entre o trovador Mem Rodríguez
Tenório e o jogral Juião Bolseiro, onde entram punhadas, pontapés, insultos,
ameaças de arrastar pelos cabelos, abrindo tudo por estas palavras: Juião, quero tigo fazer, / se tu
quizeres, ũa entençon. E para começar, vou dar-te um grande soco na
cara e chamar-te rapaz. Tal
mistura de versos, insultos e pancadaria de-fazer-de-conta, faz-nos
sorrir, sobretudo na resposta final do jogral: Se me arrastardes pelos cabelos
e me aleijardes, ai trovador!, nesse caso deixarvos-ei em paz!
Concedemos, porém, que
certas cantigas podiam ser levadas a sério, sobretudo no caso de Martin Soárez
e do jogral Lopo. Ódio? Não. Um certo desprezo profissional,
talvez reforçado por antipatia pessoal. Havia quem pagasse ao jogral para ele
deixar de citolar e de cantar. Que suplício! Comilão, braadador, basta-lhe rascar no instrumento, ou cantar, para
todos fugirem. Certo dia, um infanção mandou que lhe dessem três pontapés na
garganta. E foi pouco. Damos a primeira estrofe da cantiga 293:
Foi a cítola temperar
Lopo, que citolasse;
e mandaron-lh’algo dar,
en tal que a leixasse;
e el cantou logu’enton,
e ar deron-lh’ outro don,
en tal que se calasse.
Afonso Eanes Coton
ria-se de Soeiro Eanes por desconhecer as regras de bem trovar. Insinua até que
o jogral, para cantar os versos dele, corrigia alguns. Vuitoron chama
desagradecido ao jogral Martin Galo e afirma ser preciso dar-lhe alguma coisa,
para ele se calar: Ben mereç’algo Don
Martin Galo, / quando quiser cantar, por leixá-lo. Dois magnates
portugueses, de alta estirpe, Joan Pérez Aboim e Joan Soárez Coelho, notam que
certo jogral, de condição inferior, não entende a arte de tocar cítola e canta
mal. Por beber de mais? Por causa de mulheres? Por falta de jeito? Certo é que
não passa dum jogralão (jograron). Ainda assim, João Soárez defende-o um
pouco, mas de graça.
Numa arbitragem poética
entre Rui Gonçalves e Joan Eanes, Estêvan Guarda distingue bem entre a cantiga
de maldizer, onde o ataque é directo e claro, e a de escárnio, que tem forma
velada, às vezes com jogos subtis de palavras ambíguas. Questões de técnica, de
tipo quase bizantino e com raízes antigas. Entre os poetas vigoravam (mas não
muito) as diferenças de ordem social, sendo o trovador mais unido à fidalguia
do que o jogral. Daqui nasciam discussões, como a tenção de Joan Pérez Aboim e João
Soárez Coelho, acerca do jogral Lourenço. Esse jogral não se mete comigo porque
sou um trovador de primeira, declara Pérez Aboim. Soárez Coelho responde que, de
trovar, pouco entendia João Aboim. O que ele tinha eram riquezas: é vosso Toled’e Orgaz, / e todo quanto se
no mundo faz.
Por seu lado Lourenço e João Aboim já tinham discutido, directamente,
sobre ambições poéticas: Lourenço, bem ou mal, tocavas no citolão. Agora, vejo-te
metido a trovador, mas quero-te desenganar: bem
tanto sabes tu que é trobar / ben quanto sab’o asno de leer. João
Aboim, o certo é que, em várias tenções, venci alguns que diziam mal da minha
arte. E neste pleito, também vencerei. Lourenço, era preciso muito saber, para
me vencer a trovar, ou noutra coisa qualquer. Ninguém sabe, como eu, o que é um
trovador. Por isso te desenganei e direi: quita-te
sempre do que teu non for. Como nós diríamos hoje: mete o nariz no teu ofício.
Lourenço, no entanto, fica na sua, e com razão: Porque deixarei de fazer o que
mui bem faço e de tanto me serve? E faço-o também pela minha dama. Não, o trovar nunca o eu leixarei, / poi-lo
ben faç’e ei i gran sabor». In Mário Martins, A Sátira na Literatura
medieval Portuguesa (séculos XIII e XIV), Biblioteca Breve, Série Literatura,
Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Centro Virtual Camões, 1986.
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