Aviso
«O autor é um rapaz de vinte e
quatro anos, calado, metido consigo, que ganha a vida como praticante de
escrita nos serviços administrativos dos Hospitais Civis de Lisboa, depois de
ter estado a trabalhar durante mais de um ano como aprendiz de serralharia mecânica
nas oficinas dos ditos hospitais. Tem poucos livros em casa porque o ordenado é
pequeno, mas leu na Biblioteca Municipal das Galveias, tempos atrás,
tudo quanto a sua compreensão logrou alcançar. Ainda estava solteiro quando um
caridoso colega da repartição, segundo-oficial, de apelido Figueiredo, lhe
emprestou trezentos escudos para comprar os livrinhos da colecção Cadernos da Editorial Inquérito. A sua
primeira estante foi uma prateleira interior do guarda-louça familiar. Neste
ano de 1974 em que estamos
nascer-lhe-á uma filha, a quem medievalmente dará o nome de Violante, e
publicará o romance que tem andado a escrever, esse a que chamou A Viúva mas que vai aparecer à
luz do dia com um título a que nunca se há-de acostumar. Como no tempo em que
viveu na aldeia
já havia plantado umas
quantas árvores, pouco mais lhe resta para fazer na vida. Supõe-se que escreveu
este livro porque numa antiga conversa entre amigos, daquelas que têm os
adolescentes, falando uns com os outros do que gostariam de ser quando fossem grandes,
disse que queria ser escritor. Em mais novo o seu sonho era ser maquinista de
caminho-de-ferro, e se não fosse por causa da miopia e da diminuta fortaleza
física, imaginando que não perderia a coragem entretanto, teria ido para
aviador militar. Acabou em manga-de-alpaca do último grau da escala hierárquica
e tão cumpridor e pontual que à hora de começar o serviço já está sentado à
pequena mesa em que trabalha, ao lado da prensa das cópias. Não sabe dizer como
lhe veio depois a ideia de escrever a história de uma viúva ribatejana, ele que
de Ribatejo saberia alguma coisa, mas de viúvas nada, e menos ainda, se existe
o menos que nada, de viúvas novas e proprietárias de bens ao luar. Também não
sabe explicar por que foi que escolheu a Parceria António Maria Pereira
quando, com notável atrevimento, sem padrinhos, sem empenhos, sem
recomendações, se decidiu a procurar um editor para o seu livro. E ficará já
havia plantado umas quantas árvores, pouco mais lhe resta para fazer na vida. E
ficará pela derrota de ver trocado o nome a esse outro filho, o
autor baixou a cabeça e foi dali anunciar à família e aos amigos que as portas
da literatura portuguesa se tinham aberto para ele. Não podia adivinhar que o
livro terminaria a pouco lustrosa vida nas padiolas. Realmente, a julgar pela
amostra, o futuro não terá muito para oferecer ao autor de A Viúva». In J. S.
«Um enjoativo cheiro a remédios adensava a atmosfera do quarto.
Respirava-se com dificuldade. O ar, demasiadamente aquecido, mal penetrava nos
pulmões do doente, de cujo corpo se divisavam os contornos por baixo das
cobertas desalinhadas, donde se exalava um odor a febre que entontecia. Da sala
do lado, amortecido pela espessura da porta fechada, vinha um surdo rumor de
vozes. O doente oscilava devagar a cabeça sobre a almofada manchada de suor,
num gesto de fadiga e de sofrimento. As vozes afastaram-se pouco a pouco. Em
baixo, uma porta bateu e estropearam as patas dum cavalo. O ruído da areia
esmagada ao trotar do animal cresceu de súbito sob a janela do quarto e cessou
logo como se os cascos pisassem lama. Um cão ladrou. Por detrás da porta
ouviram-se passos cautelosos e medidos. O trinco da fechadura rangeu de leve, a
porta abriu-se e deu passagem a uma mulher que se aproximou da cama. O doente,
despertado da sua modorra inquieta, perguntou, num sobressalto: Quem está aí?,
e depois, reparando: Ah, és tu! Onde está a senhora? A senhora foi acompanhar o
senhor doutor à porta. Não deve tardar... Respondeu-lhe um suspiro. O doente
olhou com tristeza as longas mãos, magras e amarelas como as mãos duma velha.
Sempre é verdade que estou muito mal, Benedita? E que, segundo todas as
aparências, não devo salvar-me desta? Credo, senhor Ribeiro! Por que fala em morrer?
Não é isso que diz o senhor doutor... Meu irmão?... Sim, senhor! E também o
senhor doutor Viegas, que saiu agora. Não deve ter passado ainda o portão da
quinta. Deus Nosso Senhor o guarde de maus encontros quando passar ao pé do
cemitério, que ainda vai para as bandas dos Mouchões!... O doente sorriu. Um
sorriso vago, que lhe alegrou fugidiamente o rosto emagrecido e que lhe
engelhou os lábios finos e secos. Passou a mão pela barba densa, raiada de branco no queixo, e respondeu: Benedita,
Benedita, olha que não é razoável falar de cemitérios a um doente grave, que vê
com frequência demasiada, através da janela do quarto, os muros de um dos
tais!...
Benedita desviou o rosto e enxugou duas lágrimas que lhe assomavam às
pálpebras cansadas. Choras? Não posso ouvir falar nessas coisas, senhor
Ribeiro. O senhor não pode morrer! Não posso morrer? Tonta!... Bem vês que
posso... Todos nós podemos! Benedita tirou o lenço da algibeira do avental e
limpou, devagar, os olhos húmidos. Depois dirigiu-se para a cómoda, onde uma
imagem da Virgem parecia mover-se na oscilação da luz das velas que a rodeavam,
juntou as mãos e murmurou: Ave, Maria, cheia de graça... O silêncio caiu no
quarto. Apenas o sussurro dos lábios de Benedita o interrompia no murmurar da
oração. Do fundo do aposento saiu a voz do doente, um tanto enfraquecido e trémula: Que bela fé tu
tens, Benedita! E essa a verdadeira crença, a que não discute, a que se
conforma e acha em tudo a própria explicação.Não entendo, senhor Ribeiro. Creio
e nada mais... Sim!... Crês e nada mais... Não ouves passos? Deve ser a senhora
dona Maria Leonor. A porta descerrou-se lentamente e entrou Maria Leonor,
vestida de escuro, com uma mantilha de renda negra sobre os cabelos claros e
brilhantes.
Então, que disse o doutor Viegas? Acha-te no mesmo estado, mas crê
que melhorarás dentro de pouco tempo. Crê
que melhorarei... Sim! Melhorarei, por certo. Maria Leonor encaminhou-se para a cama e sentou-se à beira do
doente. Os olhos dele, febris, procuraram os dela. Num enternecimento brusco,
perguntou: Tu choraste? Não, Manuel! Por que havia de
chorar? Não estás pior, daqui a algum
tempo estarás curado... Que motivos terei para chorar? A passarem-se as coisas
como dizes, não tens, de facto, motivos...
Benedita, que estivera absorta, acabando a oração,
aproximou-se dos dois: Vou
ver se os meninos dormem, minha senhora. Vim
de lá agora e estavam a dormir. Mas vai, vai... Com licença!» In José
Saramago, Terra do Pecado (Viúva), Editorial Minerva, 1947, Editorial Caminho,
1997, 2010, ISBN-978 972 211 145-4.
Cortesia
de EMinerva/ECaminho/JDACT