domingo, 15 de novembro de 2015

A Confissão da Leoa. Mia Couto. «É por medo. Temos receio de que regressem. Esse medo, com o tempo, torna-se maior que a saudade. Todos os familiares respeitaram o mando: o carreiro de regresso foi bem diverso do usado na ida»

Cortesia de wikipedia e jdact

A notícia
«Deus já foi mulher. Antes de se exilar para longe da sua criação e quando ainda não se chamava Nungu, o actual Senhor do Universo parecia-se com todas as mães deste mundo. Nesse outro tempo, falávamos a mesma língua dos mares, da terra e dos céus. O meu avô diz que esse reinado há muito que morreu. Mas resta, algures dentro de nós, memória dessa época longínqua. Sobrevivem ilusões e certezas que, na nossa aldeia de Kulumani, são passadas de geração em geração. Todos sabemos, por exemplo, que o céu ainda não está acabado. São as mulheres que, desde há milénios, vão tecendo esse infinito véu. Quando os seus ventres se arredondam, uma porção de céu fica acrescentada. Ao inverso, quando perdem um filho, esse pedaço de firmamento volta a definhar. Talvez por essa razão a minha mãe, Hanifa Assulua, não tenha parado de contemplar as nuvens durante o enterro da sua filha mais velha. A minha irmã, Silência, foi a última vítima dos leões que, desde há algumas semanas, atormentam a nossa povoação. Porque morreu desfigurada, deitaram o que lhe sobrava do corpo sobre o lado esquerdo, com a cabeça virada para o Nascente e os pés virados para Sul. Durante a cerimónia, a mãe parecia dançar: vezes sem conta ela se inclinou sobre um cântaro feito por suas próprias mãos. Aspergiu água sobre a terra em volta que, depois, calcou com ambos os pés, com o mesmo embalo de quem semeia.
No regresso do funeral, havia demasiado céu nos olhos da minha pobre mãe. O caminho até casa era apenas de uns passos: o cemitério familiar ficava nas cercanias da aldeia. Hanifa fez uma breve passagem pelo rio Lideia para os banhos purificadores, enquanto, mais atrás, eu apagava as pegadas que conduziam à sepultura. Sacudam os pés, as poeiras gostam de viajar. No chão sagrado do nosso cemitério figurava mais uma cruz a mostrar que éramos distintos, entre muçulmanos e pagãos. Hoje eu sei: colocamos uma lápide sobre os mortos, não é por respeito. É por medo. Temos receio de que regressem. Esse medo, com o tempo, torna-se maior que a saudade. Todos os familiares respeitaram o mando: o carreiro de regresso foi bem diverso do usado na ida. Todavia, a imagem pegajosa não arredava da minha cabeça: o corpo de Silência erguido em ombros, envolto em panos brancos que balançavam como asas quebradas. Na soleira da nossa porta, a mãe olhou a casa como se a culpasse: tão viva, tão antiga, tão eterna. A nossa casa diferia das demais palhotas. Era feita de cimento, com telhados de zinco, apetrechada de quartos, sala e cozinha interior. Sobre o chão espalhavam-se tapetes e nas janelas pendiam poeirentos cortinados. Nós também éramos diferentes dos demais habitantes de Kulumani. Sobretudo a minha mãe, Hanifa Assulua, era distinta, assimilada e filha de assimilados. No regresso do funeral reparei como era bela: mesmo com o cabelo rapado, em obediência ao luto, o seu rosto vencia a tristeza.
Por um tempo, fitou-me como se avaliasse quanto eu lhe era preciosa. Pensei que havia maternal ternura nesse olhar. Não era assim. Outro sentimento lhe desenhou as palavras: Não terás nunca que passar por tristezas de mãe. Por favor, mamã, acabei de perder a minha irmã, disse eu. Não perderás nunca uma filha. Foi Deus que assim quis. E virou costas. Já descalça, venceu a porta e se afundou na cama. Pode-se enterrar uma filha, sim. Ela já o fizera antes. Mas não se regressa nunca dessa despedida. Ninguém pede mais a atenção de uma mãe que um filho morto. Meu pai pediu, então, às mulheres do choro que se retirassem do nosso terreiro. Entrou na penumbra da casa e debruçou-se sobre a mulher para lhe perguntar: Por que rapou o cabelo? Não somos cristãos? Hanifa encolheu os ombros. Naquele momento, ela não era coisa nenhuma. Findara o lamento das carpideiras e ela não sabia lidar com tão vasto silêncio. E o que fazemos agora, ntwangu?
Como todas as mulheres de Kulumani, chamava o marido por ntwangu. O homem chamava-se Genito Serafim Mpepe. Por razão de respeito, porém, a mulher nunca se dirigia a ele pelo nome. Éramos assimilados, sim, mas pertencíamos demasiado a Kulumani. Todo o nosso presente era feito de passado. Naquele momento, anichando-se junto dela, o marido falou-lhe com suavidade a que ela não estava habituada, cada palavra uma nuvem reparando os céus. O que fazemos agora? Ora, agora… agora, vivemos, mulher. Eu já não sei viver, ntwangu. Ninguém sabe. Mas é isso que a nossa filha nos pede: que vivamos. Não me fale sobre o que a nossa filha pediu. Você nunca a escutou. Agora não! Agora não, mulher. Não entendeu a minha pergunta: o que fazemos com a parte da nossa filha que não enterrámos? Não quero falar disso. Vamos dormir. Ela soergueu-se, apoiada num cotovelo. Os olhos estavam rasgados como os de um afogado.
Mas a nossa Silência… Calada, mulher! Esqueceu que não podemos nunca mais pronunciar o nome da nossa filha? Eu preciso saber: que partes do corpo enterrámos? Já disse para se calar, mulher. Um tremor de folha na sua voz: meu pai brigava com infernos interiores. O ensanguentado saco contendo os restos da filha ainda pingava na sua memória. E, de novo, a insepultável lembrança o assaltou: o tropel de vozes e espantos que o despertara na anterior madrugada. Genito Mpepe cruzara o pátio, adivinhando a tragédia. Momentos antes, ele tinha escutado os leões rondando a casa. De repente, rugidos, gritos e lamentos dissolveram-se no vazio, o mundo afundado aos despedaços: nada mais restava dentro dele. Para tanto esquecer é preciso não ter nunca vivido. O coração?, voltou a inquirir Hanifa. Outra vez? Eu não disse que se calasse? Enterrámos o coração? Você sabe bem o que fazem com o coração… O meu pai respirou fundo, contemplou as velhas roupas penduradas no interior do telhado. Não se sentiu diverso daquele vestuário, tombando informe e sem alma no vazio». In Mia Couto, A Confissão da Leoa, Companhia das Letras, 2012, ISBN 978-853-592-163-2.

Cortesia da CdasLetras/JDACT