segunda-feira, 16 de novembro de 2015

As Memórias de Cleópatra. Margaret George. «Uma bolha azul brilhante parece envolver todo aquele terror, o sacudir do barco e os arcos de água espalhando-se por todos os lados, formando um círculo, e os gritos das acompanhantes no barco…»

Cortesia de wikipedia e jdact

A Filha de Isis
«Para Isis, minha mãe, meu refúgio, minha companheira e guardiã solidária de todos os meus dias, do início da minha vida até ao momento que lhe convier pôr um fim a ela, aqui dedico estas escrituras, um registo de meus dias na terra. Isis, que me deu a habilidade de fazê-lo, protegei-os e preservai-os, e que a sua bondade ilumine a autora e filha sua. Embora me tenha dado estes dias sem formas, eu os marquei com minhas proezas, fazendo-os portanto singularmente meus. Assim narrei aqui a minha vida para oferecê-la inteira e verdadeiramente. Para que possa julgar tanto o trabalho das mãos como o valor do meu coração, minhas acções e meu íntimo. Aqui submeto-lhe este registo, rezando para que seja piedosa e proteja as minhas façanhas e a lembrança delas da destruição pelos meus inimigos. Sou a sétima Cleópatra da dinastia dos Ptolomeu, a Rainha, a Soberana de duas nações, Thea Philopator, a Deusa que ama o seu pai, Thea Neotera, a jovem deusa; filha de Ptolomeu Neos Dionysus, o novo Dionísio. Sou mãe de Ptolomeu César, Alexandre Hélio, Cleópatra Selene e Ptolomeu Filadelfo. Fui esposa de Caio Júlio César e Marco António. Preserve as minhas palavras e dê-lhes a sua protecção, eu lhe suplico.

O primeiro pergaminho. Calor. Vento
Águas azuis dançantes e o barulho das ondas. Vejo, ouço e sinto a calma ao meu redor. Posso até sentir nos meus lábios o gosto do sal deixado pelos borrifos da água do mar. E mais próximo ainda, posso sentir o cheiro da pele de minha mãe, embalador e inebriante contra meu nariz, enquanto ela me abraça no seu peito, a sua mão sobre o meu rosto para proteger meus olhos do sol. O barco balança suavemente, e minha mãe também se balança, assim, estou à mercê de um ritmo duplo. Isto me deixa sonolenta e o barulho da água ao redor do barco me cobre como um manto, um manto seguro. Sinto-me protegida, embalada com amor e vigilância. Eu me lembro. Eu me lembro... De repente..., a lembrança é rasgada ao meio, revirada, como deve ter acontecido com o barco. Minha mãe desaparece, e eu sou jogada para o ar e caio nos braços de alguém, braços rijos que me seguram com tanta firmeza pela minha cintura que quase não posso respirar. E as pancadas de água..., posso ouvir a água espalhando-se e os gritos, breves e surpresos. Dizem que não poderia, que eu não tinha nem três anos quando minha mãe se afogou na entrada do porto, um acidente lamentável, e logo num dia tão calmo como aquele, como pôde ter acontecido? Será que o barco foi sabotado? Será que alguém a empurrou? Não, ela apenas se desequilibrou e caiu enquanto tentava levantar-se; e você sabia que ela não sabia nadar? Não, ninguém sabia, até que já era tarde, mas por que ela ia para a água com tanta frequência? Porque gostava, a coitada, pobre rainha, gostava das cores e do barulho... Uma bolha azul brilhante parece envolver todo aquele terror, o sacudir do barco e os arcos de água espalhando-se por todos os lados, formando um círculo, e os gritos das acompanhantes no barco. Contam que alguém mergulhou para tentar salvá-la, mas foi também engolido pelas águas, duas mortes em vez de uma. Dizem também que eu me sacudi e esperneei tentando seguir minha mãe, gritando de medo pela perda, mas a minha ama me pegou com os seus braços fortes e me segurou firme. Lembro-me de quando me puseram de costas e me seguraram firme e fiquei olhando para o toldo que reflectia a água azul cintilante, incapaz de me safar dos braços firmes que me mantinham cativa. Ninguém me consola, como se faz com uma criança assustada. Estão muito mais preocupados em não me soltar. Dizem que não devo lembrar-me disto também, mas me lembro. Como me senti exposta, nua naquele banco no barco, arrancada dos braços de minha mãe e depois segura firmemente, enquanto o barco se apressava para o cais.
Alguns dias depois, sou levada para um quarto enorme e ecoante, onde a luz parece vir de todos os lados, e o vento também. É um quarto, mas parece também ser ao ar livre - um tipo especial de quarto, um quarto não para alguém, mas para um deus. É o templo de Isis, e a ama está-me levando, ou melhor, empurrando, até uma estátua alta. Lembro que preguei os pés no chão, e ela teve de me arrastar pelo chão lustroso de pedra. A base da estátua é enorme. Quase não consigo ver o que tem em cima, o que parece dois pés brancos e uma figura acima deles. O rosto está envolto nas sombras. Ponha as flores aos pés dela, diz a ama, empurrando o punho da minha mão que segura um ramalhete. Não quero soltá-lo, não quero deixá-lo ali. Esta é Isis, a ama diz suavemente. Olhe para o seu rosto. Ela está acompanhando-o. Ela vai tomar conta de vós. Agora ela é sua mãe. Será? Fico tentando ver o seu rosto, mas ele está tão alto e tão longe. E não se parece com o rosto da minha mãe». In Margaret George, As Memórias de Cleópatra, 1997, tradução de Lídia Zanon, Geração Editorial, 2000-2001, Edições Chá das Cinco, 2007, IBSN- 978-989-803-200-3.

Cortesia de GEditorial/ECdasCinco/JDACT