A Fundação. Arquimaes, o sábio dos
sábios
«(…) O conde Morfidio, que
acabava de entrar, salvou a vida do rapaz com a sua ordem oportuna. O robusto
nobre de cabelo em desalinho e espessa barba grisalha dirigiu-se lentamente até
junto de Arquimaes, que observava a cena em silêncio, enquanto os homens
armados se mantinham em estado de alerta, dispostos a lançar-se sobre o
primeiro que se atrevesse a mexer-se. Alquimista, é melhor que os teus homens
não ofereçam resistência, advertiu-o em tom ameaçador. Já sabes que não tenho
muita paciência. Que queres, conde?, inquiriu o sábio, usando um tom de
rebeldia que inquietou os presentes. Que maneira é esta de entrar na casa de um
homem de paz? Acaso te dedicas agora a atacar gente inocente? Sabemos que fazes
magia. Recebemos denúncias contra ti e contra os teus ajudantes. Se a acusação
se confirmar, morrerás na fogueira. Magia? Aqui a única magia que fazemos é
criar medicamentos para curar os doentes, respondeu Arquimaes com sarcasmo. Chegaram
rumores aos meus ouvidos de que fizeste uma descoberta importante. Virás comigo
para o meu castelo e permanecerás sob a minha tutela. Estou sob a protecção de
Arco de Benicius, respondeu Arquimaes. Não irei a sítio algum! Sabes que mais
cedo ou mais tarde acabarás por confessar o teu delito. Essa fórmula secreta
que tão bem ocultas é uma traição, sentenciou Morfidio. - Não fiz qualquer
descoberta que atente contra as leis da ciência... Isso quem decide sou eu,
alquimista maléfico. Não permitirei que o teu invento caia nas mãos erradas,
insistiu Morfidio, enquanto observava atentamente o tinteiro que Arquimaes
acabava de utilizar. Andas a conspirar contra mim e contra o teu senhor, o rei
Benicius... Eu não conspiro contra ninguém!… e assim que te encontrares sob a
minha tutela vais explicar-me todos os pormenores... Vejo que a pena está
manchada de tinta fresca, disse ele, pegando-lhe com a mão e agitando-a,
deixando cair algumas gotas no chão. O que estavas a escrever? Mesmo que to
dissesse, não te serviria de nada, argumentou Arquimaes, numa tentativa inútil
de fazê-lo desistir. Não existe nenhuma descoberta maléfica nem demoníaca... Eu
não sou um bruxo nem um feiticeiro. Sou um alquimista! O meu senhor não te
entregará fórmula nenhuma!, vociferou Arturo, vermelho de indignação. Cromell
desferiu um violento soco no estômago de Arturo que o fez cair de joelhos,
impedindo-o de terminar a sua frase. Morfidio, seguro de si mesmo, aproximou-se
do sábio e, depois de dar um pontapé numa cadeira, disse-lhe em voz baixa, como
que sussurrando: Não me provoques, traidor. Se insistires em desafiar-me, verás
como todos os teus criados, incluindo este jovem impetuoso, cairão degolados aos
teus pés.
Arquimaes leu os olhos do
selvático conde e compreendeu que este só procurava uma desculpa para levar a
cabo a sua ameaça. Toda a gente sabia que Morfidio era tão sanguinário como uma
dessas bestas que saíam de noite em busca de carne humana e que qualquer
ocasião era boa para saciar o seu apetite. Mais depressa preferimos morrer a
curvar-nos à tua exigência!, gritou Arturo do chão. Defenderei Arquimaes com a
minha própria vida, se for necessário! Isso pode arranjar-se já de seguida, rapaz,
assegurou Morfidio, segurando com força Arturo, que ainda tinha dificuldades
para respirar. Abre os olhos, Arquimaes, e verás que não estou a brincar! O
homem desembainhou a sua adaga e com um movimento rápido cravou-a no estômago
de Arturo, com a mesma frieza e indiferença como se estivesse a trinchar um
pedaço de carne num banquete. Arquimaes viu horrorizado como o corpo do seu
ajudante caía no chão, fazendo um ruído contundente. Isto vai demonstrar-te que
estou a falar a sério!, acrescentou o conde, fazendo-lhe sinal com a ponta da
adaga ensanguentada. Agora, se puderes, salva-lhe a vida com os teus remédios e
pensa na vantagem de me contares o teu segredo. Tu serás o próximo! Não passas
de uma alimária, conde Morfidio!, respondeu Arquimaes, ao mesmo tempo que
abraçava Arturo, tapando e pressionando com força a ferida grave, que sangrava
com abundância. Desde aqui onde estou, invoco as forças do bem para que
defrontem a tua maldade! Que elas te dêem o que mereces! O conde invasor
esboçou um sorriso sinistro para deixar bem claro que as maldições não o
afectavam. Ele era um homem de acção e sempre conseguia o que desejava. Em nome
da minha autoridade, tudo isto fica requisitado!, ordenou. Soldados, pegai
todos os pertences deste homem e levai-os para a fortaleza! Não toqueis em
nada!, grunhiu Arquimaes, tomado de indignação. Que a pior das maldiçoes caia
sobre aquele que se atrever a tirar um único objecto do seu lugar! Os soldados
ficaram quietos, receosos de que a ameaça de Arquimaes se cumprisse. Então,
Eric Morfidio deu um passo em frente e, depois de golpear vários objectos com a
sua espada, colocou a extremidade afiada sobre a garganta do alquimista e
pressionou até ao limite em que o aço podia perfurar a pele. Insisto para que
venhas de bom grado para o meu castelo. A menos que prefiras juntar-te ao teu
criado». In Santiago Garcia Clairac, O Reino dos Sonhos, O Exército Negro, 2006,
tradução de Ana Maria Silva, Planeta Manuscritos, Lisboa, 2009, ISBN
978-989-657-020-0.
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