Carta
a António Feliciano Castilho (II)
«(…) Isto, resumido em poucas
palavras, quer dizer: combatem-se os hereges da eschola de Coimbra por causa do
negro crime de sua dignidade, do atrevimento de sua rectidão moral, do
attentado de sua probidade litteraria, da impudencia e miseria de serem independentes
e pensarem por suas cabeças. E combatem-se por faltarem ás virtudes de respeito
humilde ás vaidades omnipotentes, de submissão estupida, de baixeza e pequenez
moral e intellectual.
V. ex.ª, com a imparcialidade que
todos lhe conhecemos, deve confessar que uma guerra assim feita é não só mal
feita, mas tambem pequena e miseravelmente feita. Mas é que a eschola de
Coimbra commetteu effectivamente alguma cousa peior de que um crime, commetteu
uma grande falta: quiz innovar. Ora, para as litteraturas officiaes, para
as reputações estabelecidas, mais criminoso do que manchar a verdade com a baba
dos sophismas, do que envenenar com o erro as fontes do espirito publico, do
que pensar mal, do que escrever pessimamente, peior do que isto é essa falta de
querer caminhar por si, de dizer e não repetir, de inventar e
não de copiar. Por que? Porque todos os outros crimes eram contra as
idêas: haveria sempre um perdão para elles. Mas esta falta era contra as
pessoas: e essas taes são imperdoaveis. Innovar é dizer aos prophetas, aos
reveladores encartados: ha alguma cousa
que vós ignoraes; alguma cousa que nunca pensastes nem dissestes; ha mundo além
do circulo que se vê com os vossos oculos de theatro; ha mundo maior do que os
vossos systemas, mais profundo do que os vossos folhetins; ha universo um pouco
mais extenso e mais agradavel sobre tudo do que os vossos livros e os vossos
discursos. Isto, sim, que é intoleravel! Isto, sim, que é infame e
revoltante e impio e subversivo! Contra isto, sim, ás armas, ergamonos na nossa
força, mostremos o que somos e o que podemos... escrevamos tres folhetins e um
prologo!...
V. ex.ª fez-se chefe d'esta
cruzada tão desgraçada e tão mesquinha. Não posso senão dar-lhe os pezames por
tão triste papel. Mas se eu, como homem, desprézo e esqueço, como escriptor é
que não posso calar-me; porque atacar a independencia do pensamento, a
liberdade dos espiritos, é não só offender o que ha de mais sancto nos individuos,
mas é ainda levantar mão roubadora contra o patrimonio sagrado da humanidade, o
futuro. É seccar as nascentes da fonte aonde as gerações futuras têm de beber.
É cortar a raiz da arvore a que os vindoiros tinham de pedir sombra e socego. E
atrophiar as idêas e os sentimentos das cabeças e dos corações que têm de vir.
O contrario d'isto tudo é que é a
bella, a immensa missão do escriptor. É um sacerdocio, um officio publico e
religioso de guarda incorruptivel das idêas, dos sentimentos, dos costumes, das
obras e das palavras. Para isso toda a altura, toda a nobreza interior são pouco
ainda. Para isso toda a independencia de espirito, toda a despreoccupação de vaidades,
toda a liberdade de jugos impostos, de mestres, de auctoridades, nunca será de mais.
O mineiro quer os braços soltos para cavar buscando o ouro entre as areias grossas.
O piloto quer os olhos desvendados para ler nos astros o caminho da náo por entre
as ondas incertas. O sacerdote quer o coração limpo de paixões, de interesses,
para aconselhar, guiar, julgar, imparcial e justo. O escriptor quer o espirito
livre de jugos, o pensamento livre de preconceitos e respeitos inuteis, o
coração livre de vaidades, incorruptivel e intemerato. Só assim serão grandes e
fecundas as suas obras: só assim merecerá o logar de censor entre os homens,
porque o terá alcançado, não pelo favor das turbas inconstantes e injustas, ou
pelo patronato degradante dos grandes e illustres, mas elevando-se naturalmente
sobre todos pela sciencia, pelo paciente estudo de si e dos outros, pela
limpeza interior d'uma alma que só vê e busca o bem, o bello, o verdadeiro.
Este
é o escriptor, o poeta, o apostolo. Se o obrigassem a respeitos convencionaes,
a terrores supersticiosos diante de certos homens, a espantos cegos diante de
certas cousas; se o fizessem baixar a cabeça e as costas para entrar a porta do
pantheon litterario; elle, o pobre, ficaria sempre curvo e submisso, humilde e
sem força propria, servo de alheias idêas e apostolo apenas de palavras
decoradas e vazias d'alma. Como se havia elle pois erguer, entre seus irmãos,
tão alto que seus olhos fossem uns como pharoes para todos os outros olhos, a
sua fronte uma como montanha de luz; tão alto que as palavras de sua bocca
cahissem sobre as cabeças como uma chuva benefica e fecundante? Seria, depois
das provas e das torturas, das genuflexões e das baixezas da iniciação no
gremio dos senhores, seria um aleijão e não gigante, um aborto em vez de
heroe e, em vez de sobr'exceder a todos com a fronte, andaria sumido entre
elles, visitado escassamente pelo sol e pela luz. Elle, que não soubera
procurar para si o seu caminho, como poderia elle allumiar o dos outros? Elle,
humilde, como ensinaria a altivez e a dignidade? Respeitador de conveniencias
estereis, como daria o exemplo das revoltas fecundas? Sem alma, como a
insuflaria no peito dos tristes e humilhados? Sem vontade, como resistiria ás
tyrannias da opinião omnipotente, ao capricho dos grandes, ás ambições, ás
tentações?» In Antero de Quental, Bom-Senso e Bom-Gosto, Carta ao Exmo Sr. António
Feliciano Castilho, Inprenda da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1865, (livros
de Lavado, Lisboa; Livraria da Viuva Moré), Pedro Saborano, the Project
Gutenberg ebook, 2009, ISO 8859-15.
Cortesia
de PGutenberg/JDACT