domingo, 15 de novembro de 2015

A Confissão da Leoa. Mia Couto. «O rugido do leão ecoaria dentro de si, rasgando-lhe as horas. Ficou um tempo na varanda a perscrutar o escuro. Talvez essa quietude lhe trouxesse repouso. Mas o silêncio é um ovo às avessas…»

Cortesia de wikipedia e jdact

A notícia
«(…) A voz regressou-lhe, já mansa: Pense assim, mulher: não há cova para um filho. Não quero ouvir, vou sair. Sair? Vou buscar o que resta da nossa filha por aí pelo mato… Não vai. Daqui de casa você não sai. A mim ninguém me vai impedir. Sairia de casa, sim, andaria por onde já não há caminhos de gente, os seus pés sangrariam, queimar-se-iam os olhos de encontro ao Sol, mas iria buscar o que restava de Silência, a sua eterna menina. Barrando-lhe a passagem, o marido ameaçou: Vou atá-la com uma corda, como se faz com os bichos. Pois me amarre. Há muito que sou um bicho. Há muito que você dorme com um bicho na sua cama… Era a pedra sobre o assunto: Hanifa enroscou os braços nas pernas, em silêncio, como se quisesse render-se ao sono. Vai dormir no chão?, inquiriu Genito. Ela estendeu o corpo no chão, a cabeça assente na pedra. A sua intenção era escutar as entranhas do mundo. As mulheres de Kulumani sabem segredos. Sabem, por exemplo, que dentro do ventre materno os bebés, a um dado momento, mudam de posição. Em todo o mundo, eles rodam sobre si próprios, obedecendo a uma única e telúrica voz. Acontece o mesmo com os mortos: numa mesma noite, e só pode suceder nessa noite, eles recebem ordem para se revirarem no ventre da terra. É então que, à superfície das campas, emergem luzes, um revolutear de prateadas poeiras. Quem dorme com o ouvido de encontro ao chão escuta essa circunvolução dos defuntos. Por essa razão, que Genito desconhecia, Hanifa recusou leito e travesseiro.
Estendida no solo, ficou escutando a terra. Não tardaria que a filha se fizesse sentir. Quem sabe até as gémeas Uminha e Igualita, as antigas falecidas, lhe entregassem recados do outro lado do mundo? O marido não se deitou: sabia que o esperava uma longa noite. A lembrança do corpo dilacerado da filha lhe afugentaria o sono. O rugido do leão ecoaria dentro de si, rasgando-lhe as horas. Ficou um tempo na varanda a perscrutar o escuro. Talvez essa quietude lhe trouxesse repouso. Mas o silêncio é um ovo às avessas: a casca é dos outros, mas quem se quebra somos nós. Uma dúvida o amargurava: como acontecera aquela tragédia? A filha teria saído de casa a meio da noite? E se assim acontecera, teria ela a intenção de pôr cobro à vida? Ou, ao inverso, o leão invadira o espaço caseiro, em jeito mais de ladrão do que de fera? De repente, o mundo inteiro se estilhaçou: furtivos passos riscaram o sossego do mato. O coração de Genito lhe cresceu mais do que o peito. Estava acontecendo aquilo que sempre sucede: os leões vinham comer os restos do dia anterior. Inesperadamente, como se ficasse possesso, o homem desatou aos berros, enquanto corria em círculos: Sei que estão aí, filhos do demónio! Mostrem-se, quero ver-vos sair do mato, vocês são vantumi va vanu!
Da janela o vi nesse agitado delírio, reclamando contra os leões-pessoas, os vantumi va vanu. Inesperadamente, tombou desamparado como se lhe tivessem quebrado os joelhos. Ergueu o rosto lentamente e viu que escuras asas de morcego o abraçavam. Não se escutava um ruído, nem folha nem asa crepitavam por cima da sua cabeça. Genito Mpepe era pisteiro, sabia dos imperceptíveis sinais da savana. Muitas vezes ele me dissera: só os humanos sabem do silêncio. Para os demais bichos, o mundo nunca está calado e até o crescer das ervas e o desabrochar das pétalas fazem um enorme barulho. No mato, os bichos vivem de ouvido. Era o que meu pai, naquele momento, invejava: ser um bicho. E, longe dos humanos, regressar à sua toca, adormecer sem pena nem culpa. Eu sei que estão aí! Desta vez, as suas palavras já não carregavam raiva. Apenas a rouquidão lhe fazia murchar a voz. Repetindo os impropérios, retornou a casa para se refugiar no quarto. A mulher permanecia enroscada, estendida no chão, tal como a havia deixado. Quando lhe ajeitou a manta, Hanifa Assulua, estremunhada, apertou com veemência o corpo do marido e exclamou: Vamos fazer amor! Agora? Sim. Agora! Estás muito confusa, Hanifa. Não sabes o que estás dizer. Recusa-me, marido? Não quer fazer um amorzinho comigo? Sabes que não podemos. Estamos de luto, a aldeia vai ficar suja. É isso que eu quero: sujar a aldeia, sujar o mundo.
Hanifa, escuta bem: o tempo vai passar, a gente vai esquecer. As pessoas esquecem até que estão vivas. Há muito que eu não vivo. Agora, já deixei de ser pessoa. Meu pai olhou-a, desconhecendo-a. A mulher nunca falara assim. Aliás, ela quase não falava. Sempre fora contida, guardada em sombra. Depois de morrerem as gémeas, ela deixou de pronunciar palavra. De tal modo que o marido, de vez em quando, lhe perguntava: Estás viva, Hanifa Assulua? Não era, porém, a fala que era pouca. A vida, para ela, tornara-se um idioma estrangeiro. Mais uma vez, a esposa se preparava para essa ausência, pensou Genito, sem reparar que, no escuro, Hanifa se estava despindo. Já nua, ela o abraçou por trás e Genito Mpepe deixou-se sucumbir perante aquele aconchego de serpente. Parecia rendido quando, de repente, sacudiu a mulher e se retirou com passo estugado para o pátio exterior. E logo desapareceu no escuro. No côncavo do quarto, minha mãe se entregou a ousadas carícias como se o seu homem realmente lhe comparecesse. Desta feita, ela comandava, galopando na sua própria garupa, dançando sobre o fogo. Suava e gemia: Não pares, Genito! Não pares! Foi então que sentiu o cheiro do suor. Ácido e intenso, como o dos bichos. Depois, escutou o ronco. A minha mãe ocorreu, então, que por cima dela não estava o seu homem, mas um bicho dos matos, sequioso de seu sangue. Durante o acto amoroso, Genito Mpepe se convertera numa fera que literalmente a devorava. Dissolvida na avidez do outro, ela permanecia paralisada, à mercê dos seus felinos apetites». In Mia Couto, A Confissão da Leoa, Companhia das Letras, 2012, ISBN 978-853-592-163-2.

Cortesia da CdasLetras/JDACT