segunda-feira, 9 de novembro de 2015

O Complexo de Culpa do Ocidente. Pascal Bruckner. «A propósito do tsunami de Dezembro de 2004, alguns até invocaram a deusa Gaia que se ergueu do fundo dos oceanos para punir a civilização industrial! Tal como a oração, a auto-acusação é um meio de agir…»

Cortesia de wikipedia e jdact

A Presunção da Aversão a Si Próprio
«(…) A aversão ao Ocidente, este prazer na condenação e na dilaceração, é tipicamente ocidental. Os sumos sacerdotes da difamação, com os seus anátemas, limitam-se a sublinhar a sua pertença a um universo que para eles é execrável. Esta desconfiança que pesa sobre os nossos êxitos mais retumbantes arrisca-se a degenerar em derrotismo fácil. O espírito crítico ergue-se contra si próprio e destrói a sua forma. Porém, ao invés de sair engrandecido e purificado, devora-se numa espécie de autocanibalismo e, nessa destruição, apela e uma morosa volúpia a que nada resiste. A hipercrítica que tudo destrói redunda então num ódio de si próprio. Da recusa dos dogmas nasce um novo dogma destruidor. Enquanto Europeus e Norte-americanos, compete-nos apenas expiar eternamente os males que infligimos aos outros povos. Será difícil entender que, desta forma, nos tornamos capitalistas da auto-acusação e que esgrimimos um singular orgulho em ser os piores? Com efeito, a autodifamação esconde dificilmente uma glorificação distorcida. Somos a origem de todos os males, ao passo que os outros homens são animados pela simpatia, benevolência e candura. É o paternalismo do remorso: julgarmo-nos reis da infâmia é, ainda assim, ocupar um lugar cimeiro na História. Desde Freud, sabemos que o masoquismo não passa de um sadismo invertido e de uma subvertida vontade de dominar. A Europa continua a ser messiânica em menor escala, é uma militante da sua própria fraqueza e dissemina a humildade e o pudor (verifica-se até um cepticismo fanático que reproduz de certa forma a fé que pretende extinguir: por exemplo, quando Cioran afirma que negar o carácter intermutável das ideias é estar condenado ao derramamento de sangue, transmite uma ideia cujos factores não são intermutáveis; em moldes similares, quando, em nome da caridade, o filósofo Gianni Vattimo pede ao cristianismo que reconheça que não é o único detentor da verdade e que doravante, no diálogo intercultural, deve calar-se e escutar os outros, reconciliando-se com a sua vocação universalista, isenta de implicações coloniais imperialistas e eurocêntricas, profere uma afirmação que recai na categoria do artifício do orgulho, assim designada por La Rochefoucauld; porque esta reivindicação unívoca não se dirige ao Islão nem ao Budismo ou ao Hinduísmo; o cristianismo seria assim o único credo a reconhecer o carácter parcial dos seus ensinamentos. É ainda em nome da noção do cristianismo como religião única que ela aceita retrair-se diante das restantes pois é a única que reconhece a pluralidade de crenças e a relatividade dos dogmas). A sua aparente autodepreciação disfarça mal uma enorme presunção. Vê a barbárie como o seu direito exclusivo, é o seu orgulho, e nega-a aos outros, descobrindo circunstâncias atenuantes (uma forma de isentá-los de toda a responsabilidade).
Ela arroga-se assim a única ré de actos desumanos e exibe o estigma dessa malevolência, tal como outros exibem as suas medalhas. Nem as catástrofes escapam a esta mania das grandezas, muitos analistas vêem no menor ciclone, inundação e tremor de terra a mão pérfida Europa e da América. A propósito do tsunami de Dezembro de 2004, alguns até invocaram a deusa Gaia que se ergueu do fundo dos oceanos para punir a civilização industrial! Tal como a oração, a auto-acusação é um meio de agir simbolicamente à distância quando nos sentimos impotentes. Atribuir ao homem a culpa de todas as desgraças do mundo é uma megalomania ímpar. Uma certa corrente da Ecologia dá provas de um antropocentrismo desenfreado e confirma o nosso estatuto de senhores e destruidores do planeta. Crer que amanhã, por exemplo, controlaremos a chuva e o bom tempo e que eclipsaremos a natureza é reincidir numa ilusão prometeica, à semelhança, dos adeptos mais fanáticos do progresso. Podem pôr tudo em causa! Tudo, excepto a nossa perversidade! Eis a prova mais flagrante do imperialismo invertido. A descolonização privou a Europa do seu poder e o seu peso económico declina continuamente mas, de acordo com uma avaliação muitíssimo exagerada, continuamos a ver-nos como o malévolo centro de gravidade do universo». In Pascal Bruckner, La Tyrannie de la Pénitence, Essai sur le Masochisme Occidental, Editions Grasset Fasquelle, 2006, O Complexo de Culpa do Ocidente. Publicações Europa-América, 2008, ISBN 978-972-1-05943-6.
                 
Cortesia de PEA/JDACT