A
Maldição. A rainha sem amor
«(…) Aquele gigante contava vinte
e sete anos, mas sua idade desaparecia sob os músculos, e poderiam bem dar-lhe
uns trinta e cinco. Tirou as luvas, dirigindo-se para a rainha, pôs um joelho
em terra, com flexibilidade surpreendente em tal colosso, e levantou-se, antes
que ela tivesse tempo de convidá-lo a isso. Então, senhor meu primo, disse
Isabel, fizestes boa travessia marítima? Execrável, senhora. Horrível,
respondeu Roberto d'Artois. Uma tempestade que nos obrigava a vomitar as tripas
e a alma. Pensei que minha última hora tivesse chegado, e até comecei a
confessar a Deus os meus pecados. Por felicidade eram tantos que, mal alcançara
a metade, já havíamos chegado. Guardei o suficiente para a volta. Desatou a
rir, fazendo os vitrais estremecerem. Mas, com os demónios, tenho mais jeito
para correr terras do que para cavalgar a água salgada. E se não fosse por amor
de vós, senhora minha prima, e pelas coisas urgentes que tenho a dizer-vos... Haveis
de permitir que eu acabe, meu primo, disse Isabel, interrompendo-o. E
mostrou-lhe o menino. Meu filho começou a falar hoje. Depois, voltando-se para
lady Mortimer: Desejo que ele se habitue com o nome dos parentes, e que saiba, desde
que seja possível, que seu avô Filipe, o
Belo, é o rei da França. Começai a dizer diante dele o pai-nosso e a avé-maria,
e também a prece ao Senhor São Luís. São coisas que devem ser instaladas no
coração antes mesmo que a razão as compreenda.
Ela não estava descontente por
mostrar a um de seus parentes da França, também descendente de um irmão de São
Luís, de que maneira velava pela educação de seu filho. É belo o ensino que
ides dar a este jovem, disse Roberto d'Artois. Nunca é cedo demais para
aprender a reinar, respondeu Isabel. Sem desconfiar de que era dela que se
tratava, a criança divertia-se a caminhar, em passos cheios de precaução e
titubeantes, como fazem os bebés. Quando se pensa que também fomos assim!,
disse d'Artois. Olhando-vos, então, meu primo, disse a rainha, sorrindo, custa bastante
crer, é verdade. Por um instante, ela pensou no sentimento que poderia ter a
mulher que engendrara aquela fortaleza humana, e no sentimento que ela própria
teria quando seu filho se tornasse um homem... A criança avançava para a
lareira com a mão estendida, como se pretendesse agarrar uma chama na sua mão
minúscula. Roberto d'Artois cortou-lhe o caminho, pondo de permeio sua bota
vermelha. Sem mostrar o menor receio, o
principezinho agarrou aquela perna, que mal podia rodear com seus braços, e
sentou-se, a cavaleiro, sobre o pé do gigante. Este levantou-o no ar por três
ou quatro vezes. Encantado com aquela brincadeira, o principezinho ria.
Ah! Messire Eduardo!, disse
Roberto d'Artois. Ousarei eu, mais tarde, quando fordes um príncipe poderoso, lembrar-vos
que cavalgastes na minha bota? Sim, meu primo, respondeu Isabel, se vos
mostrardes sempre nosso amigo leal... Que nos deixem, agora, acrescentou ela. As
damas francesas saíram, levando a criança que, se o destino seguisse normalmente
seu o curso, se tornaria um dia o Rei Eduardo III da Inglaterra. Roberto
d'Artois esperou que se fechasse a porta. Pois bem, senhora, disse ele, para
completar as boas lições que mandais dar ao vosso filho, podeis, bem depressa,
ensinar-lhe que Margarida de Borgonha, rainha de Navarra, futura rainha da
França, também neta de São Luís, será chamada, por seu povo, Margarida, a Prostituta. Realmente?, perguntou
Isabel. Então, o que pensávamos era verdade? Sim, minha prima. E não somente no
que se refere a Margarida. O mesmo se dá com as vossas outras duas cunhadas. Quê?
Joana e Branca? Branca, eu tenho certeza. Joana... Roberto d'Artois, com sua
mão imensa, fez um gesto de incerteza. Ela é mais hábil do que as outras,
acrescentou ele. Mas tenho todas as razões para acreditar que seja também uma
refinada meretriz. Deu três passos e, tomando uma atitude altiva, declarou: Vossos
três irmãos são cornu…, senhora, cornu… como qualquer labrego!
A rainha levantou-se. Suas faces
mostravam-se um tanto coloridas. Se o que dizeis é verdade, eu não tolerarei
tal coisa, disse ela. Não tolerarei essa vergonha e nem que minha família seja
objecto de risos. Os barões da França também não o suportarão, retrucou
d'Artois. Tendes os nomes, as provas? Roberto d'Artois tomou um grande fôlego.
Quando fostes à França no Verão passado, com vosso esposo, para aquelas festas
que foram realizadas na ocasião em que tive a honra de ser armado cavaleiro
junto com vossos irmãos..., porque bem sabeis que não me poupam as honras que
nada custam, comentou ele, com um riso trocista, naquele dia eu vos confiei
minhas suspeitas e vós me falastes nas vossas. Pedistes que vigiasse e vos
informasse. Sou vosso aliado. Vigiei, e agora venho informar. Então? Que
soubestes?, perguntou Isabel, impaciente. Pois bem! Antes de mais nada, que
certas jóias desapareciam do cofre de vossa doce, vossa digna, vossa virtuosa
cunhada Margarida. Ora, quando uma mulher se desfaz secretamente de suas jóias,
ou é para presentear um amante ou para comprar cúmplices. Está claro, não
achais? Ela pode dizer que deu esmolas à Igreja. Nem sempre. Quando determinado
broche, por exemplo, tiver sido trocado em casa de um mercador lombardo por um
punhal de Damasco... E descobristes em que cinto está preso esse punhal? Infelizmente
não!, respondeu d'Artois. Procurei, mas perdi a pista. As meretrizes são
hábeis, como vos disse. Jamais cacei cervos, em minhas florestas de Conches,
tão espertos quanto elas em apagar as pegadas e em tomar atalhos». In
Maurice Druon, Os Reis Malditos, O Rei de Ferro I, 1965, tradução de Nair
Lacerda, Gótica, colecção Cavalo de Tróia, 2006, ISBN 978-972-792-159-1.
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