sexta-feira, 20 de novembro de 2015

As Cidades Invisíveis. Italo Calvino. «… um negro cego a gritar no meio da multidão, um louco a debruçar-se do terraço de um arranha-céus, uma rapariga a passear com um puma pela trela. Na realidade muitos dos cegos que batem as bengalas…»

jdact e wikipedia

As cidades e o desejo. 3
«(…) De duas maneiras se chega a Despina: de navio ou de camelo. A cidade apresenta-se diferente a quem vem por terra e a quem vem por mar. O condutor de camelos que vê aparecer no horizonte do planalto os pináculos dos arranha-céus, as antenas de radar, esvoaçar nos aeroportos as mangas de vento brancas e vermelhas, deitar fumo as chaminés; pensa num navio, sabe que é uma cidade mas pensa-a como uma nau que o leva para fora do deserto, um veleiro que esteja para zarpar, com o vento já a inchar-lhe as velas ainda não desfraldadas, ou um vapor com a caldeira a vibrar na querena de ferro, e pensa em todos os portos, nas mercadorias das colónias que os guindastes descarregam nos cais, nas tabernas onde tripulações de diferentes bandeiras quebram garrafas nas cabeças uns dos outros, nas janelas iluminadas dos rés-do-chão das casas, cada uma com uma mulher a pentear-se.
Por entre o nevoeiro da costa o marinheiro distingue a forma de uma bossa de camelo, de uma sela bordada de franjas cintilantes entre duas bossas sarapintadas que avançam a balançar, sabe que é uma cidade mas pensa-a como um camelo de cuja albarda pendem odres e alforjes cheios de frutas cristalizadas, vinho de palmeira, folhas de tabaco, e já se vê à cabeça de uma longa caravana que o leva para fora do deserto do mar, a caminho de oásis de água doce à sombra serrilhada das palmeiras, para palácios de grossas paredes caiadas, de pátios com mosaicos em que dançam descalças as bailarinas, e movem os braços um pouco dentro e um pouco fora do véu. Todas as cidades recebem a sua forma do deserto a que se opõem; e é assim que o condutor de camelos e o marinheiro vêem Despina, cidade de fronteira entre dois desertos.

As cidades e os sinais. 2
Da cidade de Zirma os viajantes tornam com recordações bem distintas: um negro cego a gritar no meio da multidão, um louco a debruçar-se do terraço de um arranha-céus, uma rapariga a passear com um puma pela trela. Na realidade muitos dos cegos que batem as bengalas nas calçadas de Zirma são negros, em cada arranha-céus há sempre alguém que enlouquece, todos os loucos passam horas nos terraços, não há puma que não seja criado por um capricho de rapariga. A cidade é redundante: repete-se para que haja qualquer coisa que se fixe na mente. Eu também estou de regresso de Zirma: a minha recordação compreende dirigíveis que voam em todos os sentidos à altura das janelas, ruas de lojas onde desenham tatuagens na pele aos marinheiros, comboios subterrâneos apinhados de mulheres obesas cheias de calor. Em contrapartida, os companheiros que estavam comigo na viagem juram que viram um único dirigível pairar por entre os pináculos da cidade, um único tatuador colocar na banca agulhas e tintas e desenhos perfurados, uma única mulher-canhão a abanar-se na plataforma de uma carruagem. A memória é redundante: repete os sinais para que a cidade comece a existir.

As cidades subtis. 1
Isaura, cidade dos mil poços, presume-se que se situe por cima de um profundo lago subterrâneo. Por toda a parte onde os habitantes escavem na terra longos furos verticais conseguem tirar água, e foi até aí e não para além desses limites que se alargou a cidade: o seu perímetro verdejante repete o das margens escuras do lago sepultado, uma paisagem invisível condiciona a visível, tudo o que se move sob o sol e impelido pela onda que bate encerrada sob o céu calcário da rocha. Por consequência, dão-se religiões de duas espécies em Isaura. Os deuses da cidade, de acordo com uns, habitam as profundidades, o lago negro que nutre as veias subterrâneas. Segundo outros, os deuses habitam os baldes que sobem pelas roldanas quando saem fora da boca dos poços, nas polés que giram, nos cabrestantes das noras, nas alavancas das bombas, nas pás dos moinhos de vento que puxam a água dos furos artesianos, nos castelos das plataformas que sustêm o aparafusar das sondas, nos reservatórios suspensos sobre os tectos em cima de andas, nos arcos finos dos aquedutos, em todas as colunas de água, nos canos verticais, nos ferrolhos, nas válvulas, até às girândolas que se sobrepõem aos andaimes aéreos de Isaura, cidade que se move toda para cima». In Italo Calvino, As Cidades Invisíveis, 1990, Editorial Teorema, Lisboa, 2003, ISBN 972-695-374-X.

Cortesia de ETeorema/JDACT