O Arco
da Santa. A Conversa das Vizinhas
«(…)
Pois bons quinhentos anos antes deste fatal acontecimento, fora esse arco de
Sant’Ana testemunha e próprio lugar de cena, da interessantíssima história que
vou relatar, e que extraí, com escrupulosa fidelidade, do precioso manuscrito
achado na livraria reservada do reverendo Prior dos Grilos, a quem Deus
perdoe não ter deixado na sua cela, quando fugiu, nem uma caixa de doce, nem
uma garrafa de vinho potável, nem gulosice de nenhuma espécie, das que eram de
esperar naquele devoto aposento, e que bem contávamos achar nele os pobres estudantes
quando ali chegamos mortos de sede e de cansaço. Por mim, bem contente fiquei
com esta única parte do espólio que me coube, e, salvo o doce, que a esse não perdoava eu, não tomaria outra, apesar da
legislação e prática então vigente, e que não sei se ainda hoje vige e viça,
mas conheço muita gente que viçou, floreou e frutificou por ela e com ela. Vamos
adiante! Eu, se por leis de guerra, não estou em boa posse do que assim houve e
hoje dou por meu na presente crónica, sincera e
publicamente me acuso, e farei plena restituição a quem competir. Não é costume
entre os nossos irmãos escrevedores de histórias, contos e semelhantes; mas não
importa.
Seriam
dez horas da noite, horas mortas para aquela boas eras em que nossos temporãos
avoengos jantavam de dia às dez para as onze, e ceavam quase com dia, ao por do
sol. A noite era de luar, mas o estreito da rua e a proximidade das muralhas da
cidade, que então corriam pouco além daquelas imediações, mal deixavam penetrar
um baço reflexo de seu clarão pela obscuridade permanente. Apenas a lâmpada do
arco dava ténue e raro vislumbre de claridade, tão frouxo e tíbio que mal
indicava o sítio em que jazia, mas em que nada quebrava as trevas
circunstantes. Era a estas horas e neste lugar, que de uma gelosia à esquerda
do arco surdiu uma voz baixa e como de quem teme e deseja ao mesmo tempo que a
ouçam. Dizia a voz: Aninhas, mana, Aninhas!... Menina, mana, ouves? Sou eu:
ouves?
Cada
uma dessas palavras era dita com grandes intervalos uma da outra, e crescendo
progressivamente de tom, por modo que a última já se devia de ouvir sem
dificuldade em pequena distância. Mas, se alguém ouviu, ninguém respondeu. Seguiu-se
um bom minuto de silêncio. Logo, da mesma gelosia donde pareceu sair a voz,
saiu também uma mãozinha delicada e alva que, de tão alva, resplandeceu com a
pequena luz da lâmpada que toda reflectia sobre ela. A mãozinha bateu mansinho
nos vidros do arco, repetindo outra vez: Aninhas, psiu! Ouves?
Não
tardou a escutar-se o pé ante pé de quem acudia àquele chamado; foi um vulto
escuro e, ao parecer, feminino, que, pelo postigo que da casa fronteira abria
para o interior do arco, entrou daquele modo cauteloso e sorrateiro. Encaminhou-se
até ao extremo canto oposto, onde o arco pegava com as casas da esquerda, e
resvés com a janela donde surdira a primeira voz. Sentiu-se então algum rumor
debaixo do arco, e um murmurar de voz masculina que dizia: Bem digo eu que a
moça é um anjo! É a santa que lhe vem falar: querem ver? Mana, mana! Exclamou
de cima do arco o vulto que aí tinha aparecido: não ouviste uma voz de homem
aqui por baixo? Não. E, daqui onde eu estou, até lhe veria a sombra, se aí
estivesse alguém. Não tenhas medo: toda a vizinhança dorme já; e, a não ser
o bispo ou Pêro Cão, não creio que ninguém mais vele em toda a cidade.
Logo
te lembraram esses fariseus... Que a virgem Maria os confunda, mais a senhora
Sant’Ana! Amém! E justiça del-rei Pedro I que sobre eles caia! Ai Gertrudinhas!
Que se Deus e seus santos me não valem, não sei que será de mim. Justiça
del-rei Pedro I, dizes tu. E donde há de ela vir a esta terra, onde nem rei nem
povo nunca puderam nada contra seus tiranos e opressores?... El-rei, filha, tão longe, e tão fora de eu
nunca o poder ver... E os meus inimigos tão poderosos e tão perto... El-rei
Pedro I! O caso que eles fazem dele, e o que lha eles importa com sua justiça e
suas leis! Eles sim!... Que nesta cidade mais reis são eles que nenhum rei:
dizem os traidores; e dizem-no e fazem-no; e que outro rei farão, em vez dele,
se lhe não catar seus privilégios como já fizeram ao bisavô que se chamava... Ao
irmão de seu bisavô, queres dizer; el-rei Sancho.
Pois
sim, será; que disso nada sei, nem sou lida e sabida como tu... Também não
tenho tio físico que traz anel no dedo e gualdrapa na mula, e anda atrás de
el-rei c’os alforjes cheios de drogas. Cá eu, sou a pobre mulher de um ourives,
que não sei senão governar a minha casa, deitar as minhas teias... E ser o
exemplo das mulheres honradas. Que assim foram todas, e já estes clérigos de má
morte, mais estes frades trapaceiros não fariam o que fazem. A resposta de
Gertrudes produziu o seu efeito, abrandando o tom picado que visivelmente transparecia
na fala antecedente da que, já agora claro se vê, era a sua íntima amiga, a boa
Ana, Anicas, ou Aninhas, como ela, pelo engraçado diminutivo minhoto, lhe
chamava.
Tornou-lhe
a sincera Ana com a primeira suavidade e mavioso acento: Minha querida
Gertrudinhas, olha que to digo hoje aqui, na presença da senhora Sant’Ana que
nos ouve... E eu que lhe acendo todos os dias a sua lâmpada, que é legado de
meu pai, que bem dito o deixou no seu testamento, que antes faltasse o unto no caldo de sua filha única, do que o azeite
na alâmpada do arco da Santa. E assim vê lá se eu lha acenderei todos os
dias ou não! E quando estou doente é meu marido... Coitado! O que será feito
dele? Quem no mandou ir lá para Lisboa, a troco de arrecadar essas dívidas que
Deus sabe se ele nunca as haverá? Mas para lá foi, e por lá anda; e, com mal um
ano da casada, eu cá fiquei só, com o meu Fernando, que já diz pai,
a pobre criança!... Mas nunca o pai lho ouviu dizer, nem Deus sabe se ouvirá!
Diz-me cá uma coisa negra no coração que não...» In Almeida Garret, O Arco de
Santana, 1845-1850, Imprensa Nacional, Livraria Figueirinhas (1947-1ª edição) Porto
Editora, Porto, 2011, ISBN 978-972-004-980-3.
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