quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Os Reis Malditos. O Rei de Ferro. Maurice Druon. «Isabel conservava-se pensativa diante daquele furacão de palavras. D'Artois aproximou-se dela e, baixando a voz: Elas vos odeiam. É verdade que, de minha parte, não gostei muito delas, desde o princípio…»

Cortesia de wikipedia e jdact

A Maldição. A rainha sem amor
«(…) Isabel teve uma expressão decepcionada. Roberto d'Artois adiantou-se ao que ela ia dizer, estendendo os braços. Esperai, esperai, disse ele. Isso não é tudo. A honesta, a pura, a casta Margarida mandou arranjar um aposento na velha torre do Palácio de Nesle a fim, disse ela, de lá recolher-se para fazer suas orações. Acontece porém que ela faz suas orações exactamente nas noites em que vosso irmão Luís está ausente. E a luz brilha ali até bem tarde. Sua prima Branca, às vezes sua prima Joana, vão ter com ela. Espertas, as donzelas! Se alguma fosse interrogada, não lhe custaria nada dizer: Como? De que me acusais? Mas eu estava com a outra. Uma mulher culpada defende-se mal. Três devassas obstinadas são uma fortaleza. Entretanto, vede bem: nas mesmas noites em que Luís está ausente, nas mesmas noites em que a Torre de Nesle tem luz, naquela ribanceira ao pé da torre, naquele lugar sempre deserto há movimento. Já se viu saírem homens que não estavam vestidos de frades e que, se tivessem vindo cantar o ofício da tarde, teriam entrado por outra porta. A corte cala-se, mas o povo começa a murmurar, porque os criados tagarelam antes dos senhores... Falando, ele se agitava, gesticulava, caminhava, abalava o chão, e sacudia o ar com grandes movimentos de sua capa. A exibição de excesso de força era, em Roberto d'Artois, uma forma de persuasão. Procurava convencer tanto com os músculos quanto com as palavras, e encerrava seu interlocutor num turbilhão. E a grosseria de sua linguagem, tão de acordo com o seu aspecto, dava a impressão de ser a prova de uma rude boa fé.
Entretanto, observando-o mais de perto era possível pensar se todo aquele movimento não seria alarde de pelotiqueiro, ou representação de comediante. Um ódio atento, tenaz, luzia nos olhos cinzentos do gigante. E a jovem rainha esforçava-se por conservar-se senhora de si. Falastes nisso com meu pai?, disse ela. Minha boa prima, conheceis o rei Filipe melhor do que eu. Acredita tanto na virtude das mulheres que seria preciso mostrar-lhe vossas cunhadas deitadas com os seus amantes para convencê-lo a ouvir-me. E eu não sou muito bem-visto na corte, desde que perdi meu processo... Sei, meu primo, que foram injustos convosco, e se dependesse só de mim essa injustiça seria reparada. Roberto d'Artois precipitou-se para a mão da rainha, pousando ali os lábios, num grande ímpeto de gratidão. Mas justamente por causa desse processo, recomeçou docemente Isabel, não poderiam julgar que estais agindo por vingança? O gigante levantou-se de um salto. Mas está claro, senhora, que estou sendo instigado pelo desejo de vingança!
Decididamente era desarmante, aquele grande Roberto! Pensava-se em armar-lhe um laço, apanhá-lo em flagrante, e ele se abria, inteiramente, como uma janela. Roubaram-me a herança do meu condado de Artois, exclamou ele, para dá-lo à minha tia Mafalda de Borgonha..., a cadela, a rameira! Que ela rebente! Que a lepra lhe coma a boca! Que o peito lhe caia em podridão! E por que fizeram isso? Porque, à força de engodar, de intrigar, de forrar as mãos dos conselheiros de vosso pai com belas libras sonantes, ela conseguiu casar com vossos irmãos aquelas duas devassas que são suas filhas, e a outra devassa, que é sua prima. Começou então a imitar um discurso imaginário de sua tia Mafalda, condessa da Borgonha e de Artois, dirigindo-se ao rei Filipe, o Belo: Meu caro senhor, meu parente, meu compadre, e se casásseis minha querida Joana com vosso filho Luís? Não? Ele não quer? Acha que ela é um tantinho enfezada? Pois bem: dai-lhe Margarida, então, e depois dai Joana a Filipe, e minha doce Branca ao vosso belo Carlos. Que prazer, vê-los enamorar-se uns dos outros! E depois, se me concederem o Artois, que era propriedade de meu defunto irmão, meu Franco-Condado da Borgonha irá para aquelas pombinhas. Meu sobrinho Roberto? Que lhe deem um osso àquele cão! O Castelo de Conches, o condado de Beaumont bastam para tal labrego. E eu sopro minhas malícias nas orelhas de Nogaret, e mando mil maravilhas a Marigny..., e caso uma, e caso duas, e caso três. E mal isso se faz, minhas loureirazinhas começam as suas combinações, seus recadinhos, arranjam amantes, e se ocupam em cornear muito bem a coroa da França...
Ah!, se fossem irrepreensíveis, senhora, eu saberia roer meu freio. Mas comportarem-se assim com tamanha baixeza, depois de me terem prejudicado tanto, as meninas da Borgonha hão de saber quanto isso lhes custará, e eu me vingarei nelas de tudo quanto me fez a mãe (O caso da sucessão do Artois é um dos mais prodigiosos dramas de herança que a história regista; em 1237, São Luís dera o condado pariato do Artois, como apanágio, a seu irmão Roberto. Esse Roberto I d'Artois teve um filho, Roberto II, que se casou com Amicie de Courtenay, dama de Conches. Teve dois filhos: Filipe, morto em 1298 de ferimentos recebidos na Batalha de Furnes, e Mafalda, que se casou com Othon, conde palatino da Borgonha; por morte de Roberto II, ocorrida em 1302, na Batalha de Courtray, ferido por trinta golpes de pique, a herança do condado foi reclamada ao mesmo tempo por seu neto Roberto III (filho de Filipe) e por sua filha Mafalda, que invocava uma disposição do direito consuetudinário do Artois; Filipe, o Belo, em 1309, resolveu a pendência em favor de Mafalda; esta, tornada regente do condado da Borgonha pela morte de seu marido, nesse meio tempo casara as suas duas filhas, Joana e Branca, com o segundo e o terceiro filhos de Filipe, Filipe e Carlos; a decisão que a favoreceu foi grandemente inspirada por essas alianças, que traziam novamente para a coroa o condado da Borgonha, chamado Franco-Condado, entregue como dote a Joana; Roberto não se deu por vencido, e durante vinte anos, com obstinação rara, através de acções jurídicas ou por acção directa, manteve contra a tia uma luta em que todos os processos foram utilizados de parte a parte, delacção, calúnia, falsificações, feitiçaria, envenenamento, agitação política; tal luta terminou tragicamente para Mafalda, tragicamente para Roberto, tragicamente para a França e tragicamente para a Inglaterra).
Isabel conservava-se pensativa diante daquele furacão de palavras. D'Artois aproximou-se dela e, baixando a voz: Elas vos odeiam. É verdade que, de minha parte, não gostei muito delas, desde o princípio, e sem saber por quê, disse Isabel. Não gostais delas porque são falsas, porque não pensam senão no prazer e não têm o senso de seus deveres. Mas elas vos odeiam porque têm ciúmes de vós. Minha sorte, entretanto, nada tem de invejável, disse Isabel, suspirando, e o lugar delas parece-me mais doce do que o meu. Vós sois uma rainha, senhora. Vós o sois na alma e no sangue. Vossas cunhadas poderão usar a coroa, mas nunca serão rainhas. E é por isso que sempre vos tratarão como inimiga. Isabel levantou para seu primo os belos olhos azuis, e d'Artois sentiu que dessa vez acertara. Isabel estava definitivamente de seu lado. Tendes os nomes de..., enfim..., dos homens com os quais minhas cunhadas..., disse ela». In Maurice Druon, Os Reis Malditos, O Rei de Ferro I, 1965, tradução de Nair Lacerda, Gótica, colecção Cavalo de Tróia, 2006, ISBN 978-972-792-159-1.

Cortesia Gótica/JDACT