sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Sexualidade. Corpo. Direito. Michel Foucault. Luís Souza, Thiago Sabatine, Bóris Magalhães (organizadores). «… conceitos são ferramentas fundamentais para percebermos analiticamente as manifestações e os pequenos movimentos que explodem molecularmente, e que podem tomar importantes dimensões…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Margareth Rago. A aventura de contar-se. Foucault e a escrita de si de Ivone Gebara
«A decepção com a política institucional pode, em muitos momentos, impedir a percepção de outras formas de luta política e de intensa crítica cultural que se desenvolvem no quotidiano, quase que marginalmente, transformando os padrões culturais, desafiando o regime de verdades instituído, abrindo espaços para deslocamentos subjectivos e colectivos. Nesse contexto, conceitos são ferramentas fundamentais para percebermos analiticamente as manifestações e os pequenos movimentos que explodem molecularmente, e que podem tomar importantes dimensões, desde que sejam potencializados. Penso em particular nas várias práticas feministas que têm sido produzidas nas últimas décadas, no Brasil, mas que podem passar despercebidas se não forem evidenciadas e analisadas numa perspectiva crítica adequada. Para tanto, Foucault fornece importantes conceitos que permitem constatar a construção de novos valores éticos e de novas práticas políticas e subjectivas, na actualidade. Muito embora os feminismos tenham uma relação bastante ambígua com esse filósofo, o que atribuo em parte ao desconhecimento de sua extensa obra, especialmente as problematizações do último momento de sua vida, várias intelectuais feministas têm procurado construir novas pontes entre as suas reflexões e aquelas que constituem o foco de interesse dos feminismos, não apenas no Brasil.
Dentre estas, Tânia Swain, historiadora e editora da revista digital labrys, estudos feministas, tem insistido na importância do conceito de dispositivo da sexualidade para percebermos as estratégias disciplinares e os jogos de poder que fazem parte do sistema sexo / género desde a Modernidade, e que são reactualizados incessantemente no presente, capturando os corpos e impondo uma heterossexualidade normalizadora. No hemisfério norte, McLaren, no seu livro Foucault, Feminism and Embodied Subjectivity (2002), Dianna Taylor, na coletânea de artigos intitulada Feminism and The Final Foucault (2004) e Chloe Taylor, em The Culture of Confession: from Augustin to Foucault. A genealogy of the confessing animal (2009) avançam nas suas apropriações das análises e problematizações foucaultianas, ao desdobrá-las em conexão com as questões feministas sobre a subjectividade, a ética e a produção da verdade.
Essas instigantes análises convergem com as preocupações que têm caracterizado os trabalhos desenvolvidos no interior do grupo de pesquisa Género, Subjectividades e Cultura Material, criado no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Caminas,desde os anos 2000. Neste, desenvolvemos, entre outras, pesquisas que visam destacar as práticas feministas transformadoras na arte, na literatura, no cinema e na política, no Brasil e na América Latina, a partir de vários conceitos de Foucault, como os de estéticas da existência, cuidado de si, escrita de si e parresia. Trata-se, a nosso ver, de um novo e instigante campo de pesquisas históricas, que certamente se reforça com o encontro de outras produções feministas orientadas pela filosofia de Foucault e que também se nutre dos aportes de Deleuze e Guattari. É nesse campo de investigação, portanto, que o presente texto se situa, tendo como foco privilegiado de análise a narrativa autobiográfica da filósofa feminista Ivone Gebara, autora de As águas do meu poço. Reflexões sobre experiências de liberdade (2005), de entre outros importantes livros. Viso experimentar possibilidades de interpretação da sua escrita, na chave aberta por Foucault com suas reflexões sobre a constituição da subjectividade ética na escrita de si dos antigos. Pergunto, portanto, pelas possíveis práticas de estetização da existência que emergem no contexto dos feminismos contemporâneos, norteada ainda, pelas questões colocadas por Deleuze, quando, ao fazer um retrato de Foucault no livro Pourparlers (Negociações), pergunta pelos lugares onde novas formas de existir podem estar emergindo [(...) uma existência artista, quais são os nossos processos de subjectivação irredutíveis aos nossos códigos morais? Onde e como estão sendo produzidas novas subjectividades? O que podemos encontrar nas comunidades contemporâneas?)] Assim, destaco a leitura feminista que Gebara constrói em relação ao seu próprio passado e à história recente do país, e a maneira relacional de pensar-se a si mesma, a partir dos textos escritos e das entrevistas que realizamos entre 2008 e 2009.
Nascida numa família sírio-libanesa, no coração da cidade de São Paulo, em meados dos anos quarenta, Gebara vive, há muitos anos, num bairro do concelho do Recife e dedica-se à luta pelos direitos da população pobre e das mulheres, em especial. Escritora, professora e conferencista feminista e socialista, como se afirma, publicou inúmeros livros, traduzidos em diversos idiomas, em que expõe sua profunda crítica às formas da dominação capitalista e patriarcal, sobretudo aquelas operantes no interior da igreja e da religião. Destacam-se: Vulnerabilidade, Justiça e Feminismos. Antologia de textos (2010); Rompendo o silêncio. Uma fenomenologia feminista do mal (2000); O que é Cristianismo? (2008); O que é teologia feminista? (2007); O que é teologia? (2006) […] Além de inúmeros artigos publicados, Gebara constantemente realiza palestras destinadas às mulheres das regiões economicamente pobres, as mais carentes de informação e de atenção, em toda a América Latina, para não falar de outros continentes, tornando-se portanto uma figura internacionalmente conhecida e admirada». In Luís António Souza, Thiago Teixeira Sabatine, Bóris Ribeiro Magalhães (organizadores), Sexualidade, Corpo e Direito, Editora Cultura Académica, Oficina Universitária, Faculdade de Filosofia e Ciências, 2010, Unesp, Campus de Marília, 2011, ISBN 978-857-983-136-2.

Cortesia de Unesp/CampusMarília/JDACT