«Ir no ónibus até Benfica.
passar lá um dia, e voltar, era muitas vezes um romance. Partia-se do Pelourinho,
de manhã cedo, pela fresca. Ainda a essa hora não havia lojas abertos, nem sequer
se sonhava o que pudesse vir a ser a garotada dos jornais de agora, a correr e a
grilar o Popular! e o Illustrado! por todas as ruas e travessas
da Baixa, logo ao romper d'alva. Era preciso chegar sempre primeiro, para se arranjar
lugar. Tomava-se bilhete com muito antecedência. Faziam-se madrugadas. Deitava-se
a gente mais cedo na véspera, para poder saltar da cama sem grande custo às
cinco horas do manhã, ou cinco e um quarto. Se o passeio estava destinado para
o domingo, por exemplo, todo o dia de sábado se passava a preparar o farnel.
Matavam-se duas galinhas,
e assavam-se. Espreitava-se a peixeira que trouxesse maior sável e mais fresco,
cortavam-se-lhe as postas quanto mais delgadas melhor, e frigiam-se muito bem,
até ficarem quase torradas as suas muitas espinhas, tão boas de trincar. Faziam-se
duas dúzias de frituras de bacalhau, deitado de molho já na sexta-feira, misturando-se-lhe
muita cebola e muita salsa picadas o mais possível, um nadinha de noz moscada, pimenta
mais que de costume, e duas gemas de ovos também a mais.
O dono da casa, quando à
tarde voltava do Ministério, ia logo direito à cozinha para saber o que se tinna
feito, abria o forno do fogão à procura das galinhas que alouravam e reluziam do
pingo das enxúndias, admirava as postas de sável, ia meter o nariz na frigideira
onde espirravam as frituras, cheirava, fungava, achava tudo delicioso, antegozando
a boa petisqueira. Suspensa de dois dedos por uma laçada de cordel, trazia uma surpresa
também destinada ao passeio. Era um pacote feito com papel cor-de-rosa, parecendo
proveniente de loja de confeiteiro. O que seria, o que não seria, mas só no dia
seguinte se saberia o que era. E para que alguém mais curioso se não lembrasse de
desfazer o embrulho, sorrateiramente ia metê-lo num dos esconderijos da mesinha
de cabeceira!
O esperar por a festa não
era o melhor dela, mas já era muito do seu gáudio. Por volta das nove horas, o mais
tardar, já tudo estava em vale-de-lençóis, marido e mulher costas com costas, e
cada uma das filhas, e o menino, e a criada, cada qual na sua cama feita de lavado
por ser sábado, tudo com o nariz voltado para a parede, e os olhos muito apertados
a chamar o sono mais depressa…
Sono que vinha, passava e
chegava no fim num abrir e fechar de olhos, para bem dizer. Sono sem sonho, leve,
de sobressalto na realidade, a inquieta realidade de uma grande ventura que vem
perto, de um vivíssimo prazer que é certo e que não tarda. Então se acordava, como
se havia adormecido, com a alma aos saltos. Tudo era vivacidade, risota e
chilreada.
Deitando a cabeça de fora
da porta do seu quarto, o menino Pedro era o primeiro a chamar pela Demetilia, pedindo
água no jarro. E a Demetilia, quando aparecia no corredor, saindo da cozinha, onde
estava a pentear-se, e a mirar-se só com um olho no espelhinho redondo, pendurado
no caixilho da vidraça corrida para cima, vinha já com a sua cuia feita toda
crivada do ganchos, a sua saia branca muito engomada e do imensa roda já vestida,
a sua bota nova de rangedeira já calçada…
Diz-se que ninguém esfrega um olho mais depressa
que o Diabo. Pois, mais depressa que o Diabo esfrega um olho, estavam todos prontos,
e todos cá em baixo, na rua, de nariz no ar, a sorver as frescuras da manhã, a caminho
do sítio de onde partia o ónibus». In Alfredo de Mesquita, Alfacinhas, Parceria
de António Maria Pereira, Livraria Editora, Lisboa, 1910, Library University of
Toronto, 1968, PQ 9261 M47A4.
Cortesia
de University of Toronto/JDACT