Floresta de
Sobressalto
«Pelas vestes, os cadáveres seriam cristãos. Entre o dever
de enterrar os corpos e o ressentimento que dele se apossava, o monge optou por
confiar os corpos à sua morada eterna e encomendar as almas a Deus. Porém, os
elementos revelaram-se adversos e mostraram toda a sua repulsa através de um
dilúvio que se abateu, novamente, sobre o lugar. Com uma fúria insana, a força da
torrente de água impeliu os corpos outeiro abaixo, exigindo a Bernardo toda a
sua força e destreza para não ser também arrastado. A borrasca, conforme
surgiu, assim se extinguiu. Mas, o cenário traduzia o estado caótico do solo e
da flora. De onde estava, Bernardo apenas conseguia vislumbrar uma débil
luminosidade, ao longe, no vale. Montou Lucus e afastou-se do pesadelo.
Recontro em Mofatra
O céu descobrira-se momentaneamente, deixando o luar incidir
numa velha ponte romana, aparentemente reconstruída havia pouco. A claridade do
lugarejo tornara-se mais forte, à medida que Lucus se aproximava.
Entre as raras tochas acesas, destacava-se uma no que parecia uma habitação
antiga, mas sólida. Foi para lá que Bernardo voltou a montada, afagando-lhe o
dorso, na tentativa de o acalmar e de aliviar a sua dor. Porém, os afagos não lhe
revelaram a ferida que rompia o bojo do cavalo.
O monge também estava ferido. Sentia agora a dor. Talvez as
ramagens ou as rédeas o tivessem fustigado. Todavia, os cortes eram demasiado
finos e perfeitos, como que infligidos por gumes afiados. Contudo, a chuva,
que, entretanto, voltara a cair e que lhe escorria pelo corpo, aliviava-lhe o
sofrimento. Cautelosamente, Bernardo aproximou-se da aldeia. Com excepção de
uma ou outra tocha, onde bruxuleavam ténues chamas, pouco mais estava iluminado
do que uns passos em redor. Sossego, a não ser uma vozearia de chusma, abafada
e indefinível, que envolvia o ambiente.
Devagar, mas com firmeza as patas de Lucus iam esmagando, com
um bater surdo e ritmado, os dejectos que se arrastavam na rua principal. Atento,
Bernardo procurava a origem da assuada. Prosseguiu, acalmando o cavalo que
continuava a dar mostras de cansaço e dor. O barulho tornava-se mais audível, à
medida que Lucus se aproximava da mansão. Bernardo já sonhava descansar abrigado.
Pouco chovia. Estalagem,
lia-se numa tabuleta que balouçava, fustigada pelo vento. Avelha tabuleta, que
parecia não se aguentar ali por muito mais tempo, abanava com um ruído lúgubre.
Sendo pobre, a casa era uma das maiores e melhores do lugar. O granito que,
apesar de antigo, parecia firme, sustentava um telhado de madeira alto e largo,
que cobria os dois andares, sendo o último, mais recuado.
Bernardo contornou a casa, tentando ver se se tratava de um
local seguro. Pretendia deixar Lucus na cavalariça. Deteve-se junto
de uma abertura, ladeada por dois pilares de madeira. Entrou num telheiro, apeou-se
e amarrou o cavalo a uma trave. Alguns movimentos e relinchos abafados fizeram-no
olhar para as outras montadas, apenas percebidas como silhuetas de corcéis
árabes. Com movimentos demorados e rigorosos, Bernardo tirou as luvas, sacudiu
a capa, pegou no bornal e olhou novamente na direcção dos relinchos. Os animais
estavam agitados e fatigados. Surgindo do nada, ao lado de Bernardo, uma voz
grave e rouca vociferou: - Quem está aí? Mostrai-vos ou a vossa vida termina
agora!! O monge voltou-se e respondeu, para sossegar o homem: - Nada receeis! E
gente de Deus!
De súbito, uma ponta de lança gelou-lhe o pescoço,
apertando-lhe a jugular. - De que duvidais? - atirou Bernardo, seca mas
prudentemente, olhando o homem pelo canto do olho, identificando-lhe o físico e
possível ameaça. Fernando, homem atarracado e corpulento, mostrou-se. Lento e pesadão,
mas com um olhar vivo na face bochechuda, insistiu: - Esta noite não é, de boa jornada
e quem dela surge ou é salteador ou assaltado! - Tendes razão, homem de Deus!
Quem é quem, agora? - perguntou ironicamente Bernardo, a avaliar a postura do
oponente.
O estalajadeiro ficou confuso. Mudou de lugar, tentando
garantir uma melhor posição de ataque. Bernardo perdeu a esperança de convencer
o homem e deitou as mãos à lança. Atónito, Fernando viu-se sem poder atacar, ao
verificar que a lança se havia ancorado no poderoso braço de Bernardo. Este
olhava-o nos olhos, ao mesmo tempo que lhe encostava a espada ao pescoço. Fernando
debateu-se, por instantes. Depois, arregalou os olhos e franziu a testa,
estupefacto, ao identificar o cunho da espada do oponente. Com a voz tolhida,
esforçou-se: - Senh... Senhor! Desculpai-me... pelo santo nome de Deus - desculpou-se,
ainda gago de temor. - Não vos reconheci o prestígio na figura. Castigai-me ou
desculpai-me, senhor de... - Nem mais uma palavra! Calai-vos, pois não quero o
meu nome pronunciado nem a minha presença assinalada - disse-lhe Bernardo, agastado,
libertando lentamente o homem, surpreendido, também, por ter sido reconhecido
tão rapidamente.
Fernando afastou-se, deferente. Encostou a lança à parede e
olhou cabisbaixo para Bernardo, que exigiu, peremptório: - O vosso nome! Que
sabeis de mim? – Fernando… nobre senhor - hesitou o estalajadeiro. – Fernando Dias,
tal como meu pai... honrado por ter combatido ao lado do conde Nuno. A minha
consideração a quem conserva o seu cunho... - Estou elucidado, Fernando! A
minha saudação a quem descende de tão digno companheiro de meu pai - respondeu
Bernardo para, depois, reclamar um aposento ao estalajadeiro. - Vinde,
acompanhai-me - disse o homem, subserviente.
- Mostrai-me outra entrada que não a comum -
exigiu Bernardo. - Mas, senhor, como quereis...? Entrar pela janela? Lá, no
alto? -Tereis uma alternativa, decerto! Ou não hospedais gente que passa o
tempo a utilizar esse estratagema? - Há... tenho... não sei é se… para vós... a
dignidade... - Deixai-vos de juízos quanto à minha condição! Mostrai-me a passagem,
homem!» In Carlos Cordeiro, O Livro de Cale, O
Monge Negro, 1060-1089, Publicações Europa-América 2010, ISBN 978-972-1-06140-8.
Cortesia de Publicações Europa-América/JDACT