sábado, 2 de fevereiro de 2013

O Livro de Cale. Monge Negro. Carlos Cordeiro. «Com movimentos demorados e rigorosos, Bernardo tirou as luvas, sacudiu a capa, pegou no bornal e olhou novamente na direcção dos relinchos. Os animais estavam agitados e fatigados. Surgindo do nada, ao lado de Bernardo, uma voz grave e rouca vociferou: - Quem está aí?»

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Floresta de Sobressalto
«Pelas vestes, os cadáveres seriam cristãos. Entre o dever de enterrar os corpos e o ressentimento que dele se apossava, o monge optou por confiar os corpos à sua morada eterna e encomendar as almas a Deus. Porém, os elementos revelaram-se adversos e mostraram toda a sua repulsa através de um dilúvio que se abateu, novamente, sobre o lugar. Com uma fúria insana, a força da torrente de água impeliu os corpos outeiro abaixo, exigindo a Bernardo toda a sua força e destreza para não ser também arrastado. A borrasca, conforme surgiu, assim se extinguiu. Mas, o cenário traduzia o estado caótico do solo e da flora. De onde estava, Bernardo apenas conseguia vislumbrar uma débil luminosidade, ao longe, no vale. Montou Lucus e afastou-se do pesadelo.

Recontro em Mofatra
O céu descobrira-se momentaneamente, deixando o luar incidir numa velha ponte romana, aparentemente reconstruída havia pouco. A claridade do lugarejo tornara-se mais forte, à medida que Lucus se aproximava. Entre as raras tochas acesas, destacava-se uma no que parecia uma habitação antiga, mas sólida. Foi para lá que Bernardo voltou a montada, afagando-lhe o dorso, na tentativa de o acalmar e de aliviar a sua dor. Porém, os afagos não lhe revelaram a ferida que rompia o bojo do cavalo.
O monge também estava ferido. Sentia agora a dor. Talvez as ramagens ou as rédeas o tivessem fustigado. Todavia, os cortes eram demasiado finos e perfeitos, como que infligidos por gumes afiados. Contudo, a chuva, que, entretanto, voltara a cair e que lhe escorria pelo corpo, aliviava-lhe o sofrimento. Cautelosamente, Bernardo aproximou-se da aldeia. Com excepção de uma ou outra tocha, onde bruxuleavam ténues chamas, pouco mais estava iluminado do que uns passos em redor. Sossego, a não ser uma vozearia de chusma, abafada e indefinível, que envolvia o ambiente.
Devagar, mas com firmeza as patas de Lucus iam esmagando, com um bater surdo e ritmado, os dejectos que se arrastavam na rua principal. Atento, Bernardo procurava a origem da assuada. Prosseguiu, acalmando o cavalo que continuava a dar mostras de cansaço e dor. O barulho tornava-se mais audível, à medida que Lucus se aproximava da mansão. Bernardo já sonhava descansar abrigado. Pouco chovia. Estalagem, lia-se numa tabuleta que balouçava, fustigada pelo vento. Avelha tabuleta, que parecia não se aguentar ali por muito mais tempo, abanava com um ruído lúgubre. Sendo pobre, a casa era uma das maiores e melhores do lugar. O granito que, apesar de antigo, parecia firme, sustentava um telhado de madeira alto e largo, que cobria os dois andares, sendo o último, mais recuado.
Bernardo contornou a casa, tentando ver se se tratava de um local seguro. Pretendia deixar Lucus na cavalariça. Deteve-se junto de uma abertura, ladeada por dois pilares de madeira. Entrou num telheiro, apeou-se e amarrou o cavalo a uma trave. Alguns movimentos e relinchos abafados fizeram-no olhar para as outras montadas, apenas percebidas como silhuetas de corcéis árabes. Com movimentos demorados e rigorosos, Bernardo tirou as luvas, sacudiu a capa, pegou no bornal e olhou novamente na direcção dos relinchos. Os animais estavam agitados e fatigados. Surgindo do nada, ao lado de Bernardo, uma voz grave e rouca vociferou: - Quem está aí? Mostrai-vos ou a vossa vida termina agora!! O monge voltou-se e respondeu, para sossegar o homem: - Nada receeis! E gente de Deus!
De súbito, uma ponta de lança gelou-lhe o pescoço, apertando-lhe a jugular. - De que duvidais? - atirou Bernardo, seca mas prudentemente, olhando o homem pelo canto do olho, identificando-lhe o físico e possível ameaça. Fernando, homem atarracado e corpulento, mostrou-se. Lento e pesadão, mas com um olhar vivo na face bochechuda, insistiu: - Esta noite não é, de boa jornada e quem dela surge ou é salteador ou assaltado! - Tendes razão, homem de Deus! Quem é quem, agora? - perguntou ironicamente Bernardo, a avaliar a postura do oponente.
O estalajadeiro ficou confuso. Mudou de lugar, tentando garantir uma melhor posição de ataque. Bernardo perdeu a esperança de convencer o homem e deitou as mãos à lança. Atónito, Fernando viu-se sem poder atacar, ao verificar que a lança se havia ancorado no poderoso braço de Bernardo. Este olhava-o nos olhos, ao mesmo tempo que lhe encostava a espada ao pescoço. Fernando debateu-se, por instantes. Depois, arregalou os olhos e franziu a testa, estupefacto, ao identificar o cunho da espada do oponente. Com a voz tolhida, esforçou-se: - Senh... Senhor! Desculpai-me... pelo santo nome de Deus - desculpou-se, ainda gago de temor. - Não vos reconheci o prestígio na figura. Castigai-me ou desculpai-me, senhor de... - Nem mais uma palavra! Calai-vos, pois não quero o meu nome pronunciado nem a minha presença assinalada - disse-lhe Bernardo, agastado, libertando lentamente o homem, surpreendido, também, por ter sido reconhecido tão rapidamente.
Fernando afastou-se, deferente. Encostou a lança à parede e olhou cabisbaixo para Bernardo, que exigiu, peremptório: - O vosso nome! Que sabeis de mim? – Fernando… nobre senhor - hesitou o estalajadeiro. – Fernando Dias, tal como meu pai... honrado por ter combatido ao lado do conde Nuno. A minha consideração a quem conserva o seu cunho... - Estou elucidado, Fernando! A minha saudação a quem descende de tão digno companheiro de meu pai - respondeu Bernardo para, depois, reclamar um aposento ao estalajadeiro. - Vinde, acompanhai-me - disse o homem, subserviente.
 - Mostrai-me outra entrada que não a comum - exigiu Bernardo. - Mas, senhor, como quereis...? Entrar pela janela? Lá, no alto? -Tereis uma alternativa, decerto! Ou não hospedais gente que passa o tempo a utilizar esse estratagema? - Há... tenho... não sei é se… para vós... a dignidade... - Deixai-vos de juízos quanto à minha condição! Mostrai-me a passagem, homem!» In Carlos Cordeiro, O Livro de Cale, O Monge Negro, 1060-1089, Publicações Europa-América 2010, ISBN 978-972-1-06140-8.

Cortesia de Publicações Europa-América/JDACT