Presenças. Fronteiras e espaços angolanos
«É que, apesar do discurso colonial centrado na inexistência de
fronteiras e de espaços organizados africanos, os documentos do século XIX mostram
de forma inequívoca a existência de uma gestão dos espaços e das fronteiras nas
nações
africanas, mesmo se não dispondo do aparelho científico, técnico e cartográfico
que hoje apoia essas noções, e permite medir, integrar ou excluir. As estruturas
políticas africanas organizam-se em função de um território e as suas balizas são
conhecidas e controladas de forma cerrada. A existência de relações, de natureza
diversa, internações africanas, a curta e a longa distância, sublinha o facto
de as fronteiras não impedirem mas antes estimularem a afirmação e a
consolidação das complementaridades.
O mesmo é dizer que, durante séculos, as populações africanas se
mostraram capazes de assegurar a criação e a modificação, quando tal era
necessário, das suas formas de gestão, tendo estruturado os seus Estados, quer
dizer espaços politicamente definidos, geridos por instituições de carácter
político, servidas por especialistas da função política, como podemos ver em
vários exemplos de nações
angolanas, como é o caso dos lundas, dos imbangalas e, mais tarde, dos quiocos.
Para apenas referir as três nações
que fornecem os exemplos deste trabalho, de um vasto espaço socializado, feito
de complementaridades, mas balizado e nacionalmente
gerido, que se estendia, antes da dominação colonial, para a África central a partir
do centro-norte-leste do país angolano do século XX.
A maneira como os portugueses escrevem sobre os africanos e reagem
perante eles, no século XIX, é o resultado de uma longa acumulação de juízos de
valor negativos e de uma sedimentação de preconceitos, que condicionam não somente
as relações mas também os projectos portugueses. Podemos dizer que as condições
de produção dos textos se inscreve, por um lado, num longo processo de relações
entre os portugueses e os africanos, mas também no quadro mais preciso do
tempo. O que quer dizer que estas condições só podem ser explicadas através de
uma análise que cruze estrutura e conjuntura, a onga duração e os
acontecimentos bem definidos no tempo.
A Angola do século XIX apenas existe como unidade política e territorial,
social e económica no imaginário das autoridades coloniais portuguesas e por
extensão europeias. Este espaço, situado a sul do Equador, que se estende, na
visão europeia, do Atlântico para a África central, define-se através da presença
de diferentes unidades políticas africanas que mantêm entre elas longas
relações históricas complexas. Estas unidades, estas nações africanas, cujas estruturas económicas, sociais,
religiosas e políticas eram de natureza diversa, desempenhavam funções bem
definidas e ocupavam posições diferenciadas num sistema hierárquico regional.
As relações inter-africanas influenciavam directa ou indirectamente as
estruturas políticas e comerciais portuguesas, situadas na costa atlãntica nas
regiões de Luanda (1576) e de Benguela
(1617), desde os finais do século
XVI e princípios do século XVII respectivamente. Os portugueses conservam teoricamente
o monopólio europeu das relações com as populações desta região africana; o que
significa que a maioria dos documentos relativos a este espaço da África encontra-se
em escrita portuguesa, e que as condições da sua produção devem ser compreendidas
no quadro das opções políticas e económicas portuguesas». In
Isabel Castro Henriques, Os Pilares da Diferença, Relações Portugal-África
séculos XV-XX, Caleidoscópio, Ciências Sociais e Humanas, Estudos de História,
2004, Centro de História da U. de Lisboa, ISBN 972-8801-31-9.
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