Presenças. Fronteiras e espaços angolanos
«Estas presenças angolanas descritas nas fontes em língua portuguesa foram
reduzidas a uma existência lisa, sem intervenção no processo histórico angolano,
situação resultante dos conceitos e preconceitos que caracterizam o longo
percurso intelectual português para silenciar a voz do Outro , negar-lhe
qualquer autonomia histórica e transformá-lo em simples resíduo da sua própria
História. A operação histórica agora fundamental assenta não na recusa desses documentos,
mas na sua re-leitura e re-classificação, para os transformar em fontes
indispensáveis à elaboração da História de Angola. Trata-se de
despir os documentos das suas roupagens lusocêntricas e preconceituosas,
resultantes de leituras marcadas pelas ideologias e pelos sistemas culturais
portugueses e de pôr em evidência as presenças criativas e dinâmicas angolanas.
Por outras palavras, devolver aos angolanos o papel de actores centrais do seu
processo histórico, de agentes e fazedores da História de Angola.
Tornar passivas as presenças angolanas nos documentos portugueses tem como
corolário o desinteresse pela existência e pela articulação histórica das nações angolanas, a recusa em
aceitar os seus territórios, as suas fronteiras, os seus espaços de controle e
de influência. O que quer dizer que esta rejeição da história das nações que, no final do século XIX,
viriam a integrar o espaço da Angola de hoje, não é mais do que a maneira de
decidir a coisificação dos homens africanos, que a longa duração da escravatura
e do tráfico negreiro tornava evidente, fornecendo aos europeus as provas
consideradas indiscutíveis para impor essa classificação dos homens e das
mulheres africanos.
A fronte ira não pode deixar de ser considerada como uma espécie de metonímia
dos espaços e dos territórios. Os homens estabelecem relações particulares com
os ecosistemas e estas devem permitir a definição dos sistemas políticos. Os
homens criam e ocupam o espaço, tal como não podem deixar de inventar o
território que os une, fornecendo-lhes um suporte físico que, contendo-os, os
explica, graças ao trabalho, assim como ao conhecimento que permite classificar
e por isso gerir. A fronteira é inseparável do espaço, tal como está directamente
ligada ao território.
Quer dizer que a fronteira define o espaço ou o território onde os
homens se integram, pelo que a sua criação, reforçada pelo seu reconhecimento,
implicam não só contabiliar a História, mas estudar as condições que lhe dão origem
e permitem o funcionamento. Recusar espaços e fronteiras africanos é
recusar o sistema de relações que os homens vão inventando ao longo da sua
própria sedimentação histórica. As fronteiras existentes em África são
reveladoras de, pelo menos, dois sedimentos históricos.
- O primeiro foi criado pelas próprias escolhas e invenções políticas africanas;
- O segundo, que procurou quase sempre desconhecer o primeiro, depende essencialmente da presença estrangeira, isto é, das decisões europeias e mais ainda das operações levadas a cabo pelos europeus após a Conferência de Berlim (1884-1885).
Raramente, as fronteiras modernas respeitaram ou as fronteiras anteriores
ou os interesses específicos das populações ou das estruturas políticas africanas.
Todavia, a situação é frequentemente ambígua, pois que as potências coloniais procuraram
utilizar em seu proveito seja as instituições políticas africanas, seja as
fronteiras que definiam as nações
africanas, os seus conflitos e as suas complementaridades». In
Isabel Castro Henriques, Os Pilares da Diferença, Relações Portugal-África
séculos XV-XX, Caleidoscópio, Ciências Sociais e Humanas, Estudos de História,
2004, Centro de História da U. de Lisboa, ISBN 972-8801-31-9.
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