quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Rumor Branco. Almeida Faria. «Mas eis que já formigas os homens passam constantemente na rua. Já Lisboa se afogou no nevoeiro. Se tu ao menos um sorriso visses descansavas. Não. Nada que não sejam portas e janelas. Mudo entardecer. Discreto. Nas praças autocarros»

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I Fragmento
«Uma voz existe intersticial. Há trevas à tua volta e tu não és. Serás  um dia. Por sobre este vazio orbe a luz pesa milénios em sua ansiada ausência e à superfície dos rios invisíveis o presente galopa arrepiadamente. Se fosses verias que sem ti o globo é cego minha desde já assemelhada imagem. Fazes falta. O mundo não está ainda completado. Para ele serás demasiado alto. A escuridão é aterradora fria sem fim é desolada assim sem ti. Neste hoje do princípio dos séculos não farei mais nada. O futuro continuará ao rés das águas que não são vogando. Amanhã daqui a muita espera quando a claridade brotar já sobre a crosta da terra convulsiva criarei um firmamento para o qual possas olhar constantemente sua altura aspirando e as fontes serão vistas que eram por cima do firmamento do céu e pelo solo em volta separá-las-ei com grave gesto. Nesses mares que durante séculos de séculos tombarão da névoa imóvel te poderás lavar purificar-te conhecer a tua face. Depois haverá cores e uma tarde virá e a manhã e tudo é bom. Logo ao seguinte dia o húmus se tornará das ervas que dão semente e de árvores verdes com frutos. Se fosses tinhas frutos e sementes para comer. Poderias sentir no ar o cheiro deles. Podias. Mas não chegou a tua hora ainda.
Haverá dia e noite quando estrelas e luzeiros houver o grande e o pequeno. Depois os animais. Pelas águas os peixes e répteis das águas começarão de se mover e aves nascerão que voem sobre o espaço debaixo do claro da tarde. Ruídos formas e volumes novos. Eis que é chegado o sexto dia há sonhos aguardado o sexto dia. É dos selváticos e domésticos animais a vez e répteis hão-de iniciar o seu tremendo rastejar na terra já semelhantes teus que nascerás varão e fêmea para uma longa vida de tão breve. Não desesperes porém porque serei contigo. Eu te abençoo debaixo deste sol te ordeno que cresças te multipliques e as galáxias habites sujeitando-as. Contempla a natureza que boa ou má para ti foi inventada e vive nela. . Agora uns seculares instantes vou descansar quase secreto. Mas eis que já formigas os homens passam constantemente na rua. Já Lisboa se afogou no nevoeiro. Se tu ao menos um sorriso visses descansavas. Não. Nada que não sejam portas e janelas. Mudo entardecer. Discreto. Nas praças autocarros. Um banal buzinar como balões a rebentar. Que pressa fornicadora em cada movimento. Imenso foi o tempo. Pelos parques da cidade um vento se desata. Roxo seria o céu se acaso fosse visto. Porém não é. Desiste. Antes repara na janela defronte onde há bem pouco ainda aquela feminina fininha figura com um de comoestápassoubemmuitoobrigada sorriso te sorriu. Não olhas. Aguardas e não chega. Teu quarto que teu não é mas da cloaca citadina porque se aluga à hora está pesado de presenças passadas espasmos idos móveis altos despidos cheios de pó. Mole é contudo a espera e tu jazes no chão. Desejas com todo o corpo o que não sabes ainda. Dos automóveis o volume rápido aumenta desde baixo. Deves pensar que o amor a amizade mesma se tornou exigente. Exige doação. Assalta sem que contudo mate. vivifica. Por isso te faz livre. Passos na escada vacilante enganam. Do quarto ao lado secas gargalhadas. Não as repeles. São parte do cenário embora como estas pervertidas. É ela ou não ainda? O soalho está pegajoso e sujo deve estar de pés e esperma sobressaltadamente derramado. Manchas no tecto de humidade escura. Um espelho sobre a cama espelha coitos futuros. Não olhes que te vês e terás medo de te ver confuso. Nesta já noite de Novembro rolam automóveis e a chuva penetra um pouco pela janela aberta. Descem passos na escada. Desatendes. Magoa-te as costelas a dureza. Mesmo assim permaneces durante os dez minutos que deves ter passado deitado dez minutos nem tanto apenas cinco e tu pensando que eram dez talvez vinte minutos meia hora. É ela quem sobe firmemente é ela. Sem bater entrou correu beijou-te a testa os olhos e a boca o lábio inferior dela no superior da tua boca um instante de paz. Pôs-se de pé para se deitar de bruços sobre a cama a sua face transversal à tua: hoje não posso problemas de fêmea. Auto-irónica riu e tu sorriste: que chatice. Também o dia pouco consentia. Um no outro sorriram: tive saudades tuas. Respondeu: e eu. E na verdade. não bem saudade mas presença sobre a pele palpável». In Almeida Faria, Rumor Branco, Editorial Caminho, 4ª edição, Lisboa, 1992, ISBN 972-21-0746-1.

Cortesia de Caminho/JDACT