sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

O Sábio Imortal. Sócrates. Miguel Betanzos. «Alguns riram-se do desgraçado rapaz, cuja expressão grotesca parecia a de um louco alucinado, pois estava agora de joelhos e pedia aos deuses que afastassem os soluços de uma vez por todas. - Tenta gargarejar com água»

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«Enquanto o outro, o amor vulgar, que pertence a Afrodite Pandemos, eu... creio que... Pausânias interrompeu o seu discurso um instante. Notava-se que os seus esforços para falar o debilitavam. Houve um breve silêncio, uma leve rouquidão e depois, de maneira imprevista, quando todos aguardavam o remate daquela alocução, já o indisposto Pausânias começara a gesticular nervosamente com as mãos, agitando-as em frente ao rosto, assinalando a sua inchada garganta de boi, dando a entender com aquela desesperada pantomima que o seu ventre inflamado pelo generoso manjar o impedia de continuar afalar o impedia de inalar o ar necessário a emitir qualquer som que não fosse um estertor ou um afrontamento.
 - Sentes-te bem? - perguntou-lhe Fedro, ao mesmo tempo que lhe atirava ar para a cara com o leque. Não houve resposta para além de um leve gemido e um brevíssimo, tranquilizador gesto da cabeça com que Pausânias deu a entender que estava bem, apenas um pouco sufocado e não tardara a recuperar o fôlego. Rodou um pouco sobre si mesmo deixando cair a barriga nos confortáveis almofadões, afrouxando aquele enorme peso que oprimia a sua humanidade, e quando a sua respiração se conseguiu fazer de maneira mais calma e sossegada, quando se viu que já recuperara a calma, todos dirigiram o olhar para o poeta Aristófanes, que se encontrava ao lado de Pausânias e devia portanto ser o seguinte a ter a palavra.
Contudo, como o seu antecessor, o jovem poeta também se empanzinara com as delícias e manjares do banquete, comera exageradamente e agora, mercê da voracidade do seu apetite e do modo apressado com que tragou um bocado atrás do outro, teve um repentino ataque de soluços que o mortificava. O estômago retraía-se e crispava-se compassadamente a cada espasmo dos seus pulmões, os músculos do pescoço contraíam-se bruscamente, a respiração agitava-se cada vez mais e, por causa daquele aborrecido incómodo, apesar de ser a sua vez de falar preferiu cedê-la ao médico Erixímaco, não sem antes lhe pedir um método para acabar com os soluços.
 - Diz-me, por favor, o que posso fazer, pediu-lhe.
Erixímaco aproximou-se dele a gatinhar, observou-lhe os olhos, tomou-lhe o pulso e depois daquela breve auscultação observou:
  •  - Não tens nada querido amigo. E se queres parar os soluços, sustém apenas a respiração durante uns instantes. Se isso falhar, gargareja várias vezes com água, e se ainda assim não parar, então procuraremos alguma coisa para fazeres cócegas no nariz, talvez uma pena ou um raminho, e veremos se consegues espirrar.
O jovem poeta inspirou profundamente e, fiel ao conselho do médico, conteve o ar nos pulmões. Enquanto isso, obrigado pelas circunstâncias, Erixímaco pensou durante uns instantes e logo disse:
 - Cavalheiros, já que pela infausta situação do nosso amigo, me tocou a sorte de continuar com os nossos discursos, direi que será um prazer partilhar convosco a minha opinião sobre o Amor. Contudo, para começar, devo confessar uma pequena divergência em relação à opinião de Pausânias. Ele disse que apenas o amor espiritual é bom e virtuoso, mas eu digo que o amor ao corpo também o é, quando evoca o bom e o virtuoso que existe nele…
Um ruidoso silvo interrompeu as palavras do médico. Todos dirigiram os olhos para Aristófanes, que tinha estado a reter o fôlego e agora, no instante, quase pronto a rebentar, como que afogado pelo esforço titânico, largara violentamente o ar numa brutal exalação que alarmou os convidados. O jovem poeta ficou estirado no chão a ofegar, mais uma vez, com o fôlego cortado e a esforçar-se por recuperar o alento; por um momento viram-no a sorrir, feliz por ter conseguido acabar com a incómoda moléstia, mas logo de seguida um novo ataque de soluços obrigou-o a torcer-se como uma lombriga.
 - É inútil... - conseguiu murmurar. - Não consigo livrar-me deles.
Alguns riram-se do desgraçado rapaz, cuja expressão grotesca parecia a de um louco alucinado, pois estava agora de joelhos e pedia aos deuses que afastassem os soluços de uma vez por todas. - Tenta gargarejar com água - insistiu Erixímaco, que dividia a sua preocupação pelo sofrido Aristófanes ao mesmo tempo que tentava tecer o seu discurso. - Bebe dois ou três golos muito lentamente e verás que passa - e procurando retomar as suas palavras acrescentou:
  •  - Dizia, pois, queridos amigos, que o amor é bom quando agrada ao corpo, e opino que esse modo e não outro é o fito da medicina à qual tão gratamente dediquei a minha vida. A arte de Asclépio, cavalheiros, não consiste senão em descobrir as tendências favoráveis e desfavoráveis do corpo, aqueles elementos que são bons e aqueles que são nocivos, para logo favorecer os primeiros e rejeitar os segundos...
In Miguel Betanzos, Sócrates, O Sábio Imortal, Editorial Sudamericana, 2005, Ésquilo, Lisboa, 2006, ISBN 972-8605-93-5.

Cortesia de Ésquilo/JDACT